FORMATURA

 

 

            A luz que rompe a escuridão da noite, sai do farol do carro, ou então do poste plantado à beira da estrada, ou até de um flasch da máquina fotográfica na mão do saudosista. Também pode alguma forma de luz romper com pré-conceitos sobre a forma de viver de cada ser. Há também um tipo de luz que faz ruminar lembranças de vidas que já passaram. Enfim, luz é vida, e vida só se faz com amor.

            O ano dois mil marcava o fim do mundo para todo mundo, mas uma família em especial, tão ingênua nem se deu conta disso. Instigada pela garra da filha mais nova, que decidida iria prestar exame vestibular e iria ingressar na universidade, Keity fez sua escolha. As cidades paranaenses de Londrina e Maringá ofereciam os cursos, os exames vestibulares coincidiam nos dias, de manhã em Maringá à tarde em Londrina, distante uma da outra cerca de cem kilômetros não permitia ficar dependente de transporte coletivo, e as duas cidades ficam distante da casa da família quase setecentos kilômetros, foi ai que começou o mais puro, o mais forte sentimento de família.

            Eu sou o pai, mesmo sendo bastante vivido ainda não compreendi qual é o meu merecimento para estar nesta família de pessoas tão maravilhosas, seres tão desprendidos como a mãe Marlene, que sempre abriu mão de muitos desejos pessoais, muitas das vezes até mesmo os pequeninos desejos para o benefício da família. A filha mais velha Sheila, já graduada tinha conhecimento e consciência das dificuldades que a irmã e toda a família iriam iniciar, mas sempre foi solidária em todos os aspectos. O irmão do meio, o Paulo era o que nas tarefas mais duras, mais difíceis, me substituía, fazia o papel de pai para a irmã mais nova, e é claro para me poupar também. Mas tinha também os adotados pelo coração, amigos dos filhos que se chegavam, e por serem pessoas muito especiais se tornavam da família, o Pedro, o André, o Edneu, e eu me continha para não chamá-los de filhos, mas os adoro e devo muito a eles.

            No ano dois mil, muitas pessoas que viviam no sul do Brasil ainda lembram do inverno rigoroso deste ano. E foi bem no meio deste inverno que aconteceu os exames vestibulares. Nas madrugadas geladas saiam de Londrina com destino à Universidade Estadual de Maringá a UEM, pela estrada iam vendo os campos cobertos de geada e sentindo o frio da manhã, lá estava o Paulo a Keity e o André, o veículo era um Uno da Fiat, modelo simples como nossas condições permitiam. Depois que deixavam a Keity na escola, Paulo e André iam até a praça da Catedral onde pela manhã o sol parecia mais intenso, e ali ficavam horas esperando até o término do exame para então retornar à Londrina onde na parte da tarde aconteceria o outro exame, e assim foi uma semana toda, acontecimentos estes descritos pelo Paulo e André com alegria e entusiasmo. Somente sentimento de irmão, de família para fazer isso.

            Tempo depois, lá estava a Keity cursando Zootecnia na Universidade Estadual do Paraná, na cidade de Maringá, cidade esta com mais ou menos cinqüenta anos de idade e muito grande, muito desenvolvida pelo poder do agro-negocio, ou simplesmente pelo trabalho do caipira que herdou a terra para nela produzir alimentos.

            “A terra é incerta, generosa um ano hostil noutro, exigente sempre.

            Tê-la não chega, é preciso conhecê-la, amá-la, viver com ela o seu ritmo sazonal.

            Sofrer com ela a chuva que tarda ou vem em excesso, ou um inverno que se prolonga.

            Conhecer tempos de exaltação ou de desanimo, tê-la no sangue e na alma. Querê-la acima de tudo, como se quer alguém, com tal força que se transmita essa força à sua “descendência”.

            A poetiza Florisbela Carneiro Zimmermann, consegue neste texto poético me mostrar uma roupa de gala da maior grandeza e beleza, para a simplicidade de um pedaço de terra onde o caipira passa a vida trabalhando.

            “Quem pega o cabo da enxada, sentindo a testa suada,

            já no começo da lida esquece da própria vida.

            Estica os olhos no eito, cigarro ao canto da boca

            tanto remendo na roupa

            tanto vazio no peito.

            Golpeando a terra ingrata, se uma modinha ele entoa

            não sabe na sua teima, que atrás do sol que lhe queima

            sobre uma nuvem de prata,

O criador lhe abençoa”.

Carpidor, é um poema escrito por Marlene Rolim Rozeto, que me mostra mesmo que timidamente de onde vem a vocação da filha Keity, para a profissão escolhida.     

            Ah! Mas naquela noite, todos estavam de roupas de gala, as mulheres com vestidos longos bordados, o menor detalhe como o das pedrinhas enfeitando a sandália, a maquiagem, o penteado, a cor das jóias ou bijuterias tinham que combinar. E os homens, relaxados por natureza tinham sempre uma mulher para cuidar destes, o terno, a gravata na cor certa, a camisa, o sapato, ah! O cinto, o tamanho da fivela, a cor, enfim.

            Naquela fila onde apenas as cores das roupas dos formandos eram diferentes, aguardávamos o chamado para nos apresentarmos ao grande publico, composto de familiares que igualmente ansiosos aguardavam no salão.

            Nossos pensamentos são movidos em acordo com as emoções que sofremos, assim um segundo de tempo pode durar a eternidade, e quando chamaram a Keity, e nós dois entramos no salão sob aplausos, eu via apenas um todo de barulho, de brilho, de luz, e minha filha foi até o palco onde se apresentavam os formandos e lá os fotógrafos disparavam seus flachs de luz, eu via minha filha lindamente vestida com os brilhos da roupa, e também dos louros da sua vitória numa batalha que durou pelo menos cinco anos, e envolveu a instituição maior que é a família. Naquele exato instante as luzes se misturavam, eu via o farol do carro no silêncio da noite de nossa viagem, aquele poste com luz da beira da estrada e naquela hora totalmente abandonado e esquecido, até mesmo pelos cachorros que não vinham fazer xixi, ruminei sim em meus pensamentos aqueles parentes, tia Rouse e o tio Antonio que vindos de longe chegaram no momento mais difícil, e como anjos enviados amenizaram sofrimentos. Meus pensamentos vagavam pelos dias que minha filha tinha ficado só naquela cidade estranha, dias de chuva, de frio, quantos momentos de solidão ela deve ter passado, quantas lágrimas derramadas, quantos amores, romances, amizades, decepções, desejos não realizados, necessidades financeiras, sonhos de consumo que não se realizarão, manhãs e tardes ensolaradas, invernos, verões, primaveras, outonos, luas cheias, minguantes, lembranças da família distante que eram saciadas apenas por telefonemas de quando em quando, e que eu finalizava dizendo: te amo, te adoro, te indolatro, te infofuro, como se estas fossem palavras mágicas, que podiam apagar todas as dores e aflições e ainda pudessem dar forças e esperanças.

 Já na realidade vi minha esposa Marlene, a mãe da Keity, a mãe da formando, aquela que se absteve de tudo nestes últimos cinco anos para poder agora em apenas alguns poucos momentos, viver a vitória da filha, porque para a mãe, a vitória de um filho é sua vitória, e é, a mais justa e soberana das vitórias, e nesse momento pude perceber essa mãe em estado de êxtase, radiante, o brilho em seus olhos era mais intenso que a mais forte das luzes, iluminava no salão destacando os membros da família, os pretendentes ou futuros membros, e os adorados adotados do coração, indo até aos que não estavam presentes ali e nem mesmo na vida, mas que ajudaram fazer a importância desse momento.

            As minhas roupas impecáveis tinham mais de uma função, uma delas era a de esconder uma vida simples que naquele momento não se continha, vibrava se encantava com a festa, observava cada detalhe, os pensamentos iam e vinham, corriam como crianças a brincar e quando lá fora do salão me mostravam as enormes sibipirunas ao longo das belas avenidas da cidade canção, onde os pássaros se deliciam alheios a tudo e a todos. O jardim da catedral onde meus filhos tremendo de frio esperavam pela criança que era a Keity quando do vestibular, tive tanta vontade de abraçá-los, de dizer de meu orgulho, de minha gratidão, mas palavras não são suficientes nestas horas, e também porque não soam claras, são sempre soluçadas, e com gosto de salmoura. Ao meu lado minha esposa, a companheira de todas as horas que juntamente vivia esses momentos extremados de emoção.

            E chegou o momento de dançar a valsa. Eu não tinha em meus braços a menininha que quando tinha dois aninhos quebrou a clavícula, e toda engessada me pedia para coçar lá dentro do gesso, como se pai tudo pudesse, tinha agora uma linda mulher que já sabia como se coçar sozinha. E dançamos e rodamos e simbolicamente entreguei minha filha para o mundo, para a profissão que ela escolheu, Zootecnia, o que em síntese é, produção de alimentos.

            “É da natureza humana, ajudar o semelhante”.

            A sublime missão de produzir alimentos é dada aos escolhidos.

            A nós outros, é dado o dever do reconhecimento.”

 

    Autorizada publicação pelo autor:  Paulo C.Rozeto

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Que apesar de ter partido, continua vivo em nossos corações.