DUAS ALMAS

DUAS ALMAS

Está triste. Chega do cemitério. Acaba de enterrar o marido. Cinco décadas de união matrimonial. Único homem de sua vida. Não quer se casar de novo. Decisão já tomada. Melhor terminar os dias carnais sozinha. Mas não vai ficar só. Tem a companhia eventual dos filhos, dos netos, dos parentes, dos amigos e até dos desconhecidos, que passam pela rua onde mora e a saúdam gentilmente.

Chega em casa aos prantos. Os filhos a consolam. O lar para ela não é mais o mesmo. Vai direto pro quarto do casal. Deita-se e ver o mundo rodar. Está fraca. Um dos filhos lhe oferece água fresca. Ela toma só um pouco. Não quer comer nada. Chora mais um pouco. Depois adormece, pensando no marido, outrora vivo.

Plena madrugada. Ela acorda sobressaltada. Grita o nome dele, uma, duas, três vezes. A filha que está do seu lado, a acalma. Foi apenas um sonho. Ah, quantos belos sonhos teve com o finado, durante os longos anos de convivência! E quando acordava, de manhã bem cedinho, ele estava ali do seu lado, roncando num sono profundo. Ela teve, sim, um daqueles sonhos lindos com ele, mas quando despertou, experimentou a triste decepção de não mais vê-lo do seu lado.

Os dias passam. Os meses passam. Os filhos que moram mais distantes, a visitam de vez em quando. Só uma das filhas, que mora perto dela, não só cuida, mas também lhe faz companhia em dias alternados. E um dos netos, pra ela não ficar só à noite, dorme com ela.

Desde o desencarne do marido que ela quase não se alimenta. Emagreceu muito. Come o quase nada com muito esforço. Era-lhe visível o semblante abatido. Às vezes, os filhos a levavam pra passear, passar dias com eles. Ela ia pra se distrair, pra esquecer um pouco da lacuna em sua vida, deixada pelo marido desencarnado. Às vezes, pedia pra voltar logo. E os filhos a traziam. Vinha-lhe à memória, o velho hábito de está com o marido em casa. Mas quando voltava, pensando na ilusão de encontrá-lo, se desabava num choro convulsivo, ao se deparar com a triste nova realidade.

Jamais teve discussão pesada com o falecido marido. A não ser, pequenas discordâncias eventuais ao longo de toda a convivência. Nem o fato dele ser espírita e ela evangélica, motivava mau-estar na relação conjugal. Nos dias consagrados aos procedimentos doutrinários, cada um seguia a rotina cabível, segundo a crença, de aprendizagem dos ensinamentos cristãos.

Mesmo sendo evangélica, ela tinha visões e pressentimentos. E, muitas vezes, se incomodava com esse aspecto mediúnico, que, na verdade, independe da religião professada. Assim, passou não só, a pressentir a presença dele, mas a vê-lo em alguns cômodos da casa, sobretudo, no quarto do casal. Incomodada com a situação, agendou algumas visitas em sua casa, com os irmãos da igreja que frequentava, para que as orações fossem feitas com o objetivo de confortar a alma desencarnada, fazendo-a desapegar-se daquele lar que viveu carnalmente, buscando dali pra frente, os novos caminhos da espiritualidade que pudessem fazê-la estar mais perto do Senhor.

O tempo foi passando e pouco adiantou as eventuais visitas dos irmãos de igreja. Ela continuava pressentindo-o e vendo-o, como se ele tivesse voltado, apesar de desencarnado, a fazer parte de sua vida. Não mais pediu a presença dos irmãos para efetuarem as preces habituais. Sem entender o que se passava, uma vez que não tinha a compreensão espírita, nem mesmo o dom mediúnico que a fazia aproximar-se dele pela sintonia perispiritual, passou a aceitá-lo ali de novo no lar, em corpo e alma, ainda que o corpo fosse perispiritual, mas para ela, era o corpo morto, que, de repente, ressussitou do túmulo, ela não sabia como, o fato é que, sorria satisfeita com a presença do marido à vida que tinha com ela.

Os filhos, os parentes, os amigos, não entenderam a sua repentina melhora. Porém, ficaram contentes com a sua boa vontade de voltar a viver, de voltar a interagir naturalmente com as pessoas, com o meio social em que vivia. Apenas um detalhe intrigava a todos que com ela conviviam. Passou a não querer mais sair. Cada vez mais se recolhia em casa. Apesar do aspecto saudável, se podia vê-la em qualquer cômodo da casa, falando sozinha.

Contra a vontade dela, uma vez que, dizia sentir-se bem, os filhos a levaram no médico, e todos os exames foram feitos. E o resultado surpreendeu a todos. Ela realmente, apesar da idade avançada, estava muito bem de saúde. Despreocupada com qualquer fato novo que pudesse ocorrer, de forma inesperada, ela sentiu a ausência do marido por uma semana. Sem saber o que fazer, esperou-o mais um pouco. Que decepção! Ele não voltou mais. Ela ainda ficou por ali, durante alguns dias, choramingando pelos cantos da casa, esperançosa de que pudesse voltar a vê-lo. Em vão. Ele realmente não vontou mais. Um certo dia, na boca da noite, um sono incontrolável a fez ir logo pra cama. Em poucos minutos se envolveu num sono profundo. No outro dia, o neto acordou um pouco mais tarde, e achou estranho que a sua avó ainda não tivesse se levantado. Chamou-a e ela não lhe respondeu. Entrou assustado no quarto dela. Chamou-a de novo, por várias vezes. E nada da avó acordar. Então resolveu sacudi-la. E quando virou-lhe o corpo, sentiu-lhe a frieza carnal. Ela estava morta, abraçada ao retrato do marido. Desencarnou e foi ao encontro dele do outro lado da vida.

Escritor Adilson Fontoura

e-mail: aafontoura@hotmail.com.br

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Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 05/02/2017
Reeditado em 11/10/2021
Código do texto: T5903750
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