964-POMPEIA A CIDADE SEPULTADA- Contos de Vovó Bia

Contos da Vovó Bia

Casa de Tio Gordo, setembro de 1943

Difíceis são os tempos de guerra, sejam locais, chamadas revoluções, sejam as imensas tragédias mundiais que envolvem países, continentes e a humanidade inteira. Por mais distantes que estejam dos locais de conflito, as pessoas, quer queiram, quer não, são afetadas pelos acontecimentos.

Francisco Curcio, que os sobrinhos chamavam de Tio Chico e sobrinhos-netos tratavam afetivamente de Tio Gordo, devido à sua enorme barriga, acompanhava com interesse e preocupação as notícias da segunda guerra mundial, trazidas com algum atraso, pelo jornal Fanfulla. Era um diário de São Paulo, em italiano, lido com avidez pelos velhos imigrantes não só da capital como também pelos milhares residentes no interior.

Durante o jantar da família, servido pontualmente asseis da tarde, ele conversava com Armando, seu sobrinho e Pedro, casado com Maria, sua sobrinha.

Sentados à mesa, tomando a sopa ou devorando as enormes folhas de alface com grossas fatias de tomate e de pão estavam também Carolina, outra sobrinha, Maria, casada com Pedro, Beatriz, irmã de Francisco, mãe de Maria, Armando e Carolina, e cinco netos de Vovó Bia, como eles chamavam a avó Beatriz.

Os netos eram Tonico e Artur, filhos de Pedro e Maria: Doralice, Otávio e Carlinhos, filhos de Alpineu e Elvira, que moravam na Fazenda Palmital e passavam a semana na cidade, na casa de Tio Gordo, a fim de freqüentarem as aulas do curso primário.

A conversa corria livre, as crianças tinham liberdade de conversar com os “mais-velhos” e estavam sempre curiosas sobre os assuntos que eles, os adultos, conversavam. Entretanto, quando Tio Gordo falava, todos se calavam, pois ele era homem de poucas palavras e falava quase que apenas o necessário. Bondoso e afável para com os sobrinhos-netos, estes o escutavam com atenção devido ao sotaque carregado de imigrante italiano que fizera a América (isto é, teve sucesso no Brasil) sem saber falar correntemente a nossa língua pátria, o português.

— Mussolini vai cair. Os soldados americanos invadiram a Itália. Justamente em Salerno. Pobre citá nostra!

Armando comentou:

— Sim, invadiram pelo porto de Salerno, mas já estão mais ao norte perto de Nápoles. A população de Salerno recebeu os americanos com satisfação. Não houve batalha por lá.

Salerno era a terra onde haviam nascido Francisco, Beatriz e Nicola, que vieram para o Brasil como imigrantes italianos na grande onda de imigração italiana dos anos de 1890 a 1900. Por isso Francisco se preocupava, embora não tivesse mais parentes vivos naquela cidade. As duas grandes guerras nas quais a Itália se envolvera acabara com a família Curcio na região, como inúmeras outras em toda a península.

Os netos escutavam calados. Em assunto de gente grande, que eles pouco ou nada compreendiam, não entravam. Mas prestavam atenção e depois iriam pedir à vovó que contasse histórias sobre o que haviam “pescado” nas conversas.

Pedro também deu alguma contribuição à conversa:

— Os aviões voam com dificuldade porque o vulcão Vesúvio está soltando muita fumaça. Parece que vai entrar em erupção novamente.

— Mamma di Dio! — Tio Gordo Exclamou. — Si ripete Il grande desastre de Pompéia!

Vesúvio, Nápoles, Pompéia, Salerno... Toninho e Dorinha prestavam atenção. Palavras mágicas, locais distantes, por onde vovó Bia e Tio Gordo haviam passado quando eram crianças, pois inúmeras histórias a avó já lhes havia contado sobre aquelas terras que lhes pareciam mágicas, tamanho era a emoção que a boa velhinha contadora de histórias colocava em suas narrativas.

Mas o que fazia vovó Bia na casa do irmão Francisco, moradia que trocara pela existência calma e tranquila na Fazenda Palmital?

Quando Beatriz chegou ao Brasil, juntamente com o os irmãos Francisco e Nicola, tinha apenas 15 anos, era uma menina. Tivera que trabalhar nos mais diversos serviços, principalmente de empregada doméstica em casas em Mococa, no estado de São Paulo, depois em um pequeno hotel de seu primo Bruno em Monte Santo, onde se casara com Aníbal Muschioni, outro jovem imigrante oriundo do norte da Itália. Casados, foram morar em pequena chácara comprada por Aníbal, e mais tarde, na Fazenda Palmital, que o marido adquirira com o produto de seu trabalho

De tez muito clara, não sabia como se proteger dos quentes raios do sol tropical, e a pele de seu rosto, das costas das mãos, braços e antebraços sofreu muito, ficou com marcas que, com a idade, foram se transformando em manchas escuras. Uma dessas manchas foi lesionada e Beatriz precisava de constantes consultas médicas, e tratamento com águas sulfurosas, que fazia em viagens anuais a Poços de Caldas. Por isso, a família resolveu que seria melhor para ela morar na grande casa de Francisco, na cidade, onde já moravam Maria e Pedro e os dois filhos, mais Armando e Carolina, solteiros.

Com ela vieram os três filhos de Alpineu e Elvira. Assim, a presença da boa velhinha e mais três netos vieram trazer mais alegria e vida à casa de tio Gordo.

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Naquela noite, os netos estavam como sempre, ansiosos para se sentarem nas poltronas da sala de visitas, como já era hábito, ao redor da Vovó Bia, para as conversas e as brincadeiras e, eventualmente, pedir à avó:

— Vovó, conta uma história, conta!

Daquela vez, Dorinha foi mais específica:

— Vovó, que conversa era aquela do Tio Gordo sobre vulcão, desastre de Pompéia...?

A doce senhora acomodou-se na poltrona de braços com assento e encosto de palhinha, ajeitou a ampla saia preta que lhe cobria os pés.

Ainda bem que o tapete está enrolado, no meu quarto. As crianças iriam se assustar se a gente passasse por perto do Vesúvio em erupção. — Pensou ela, antes de começar.

E contou a história que sabia sobre o vulcão do monte Vesúvio, Pompéia e Herculano.

— Pompéia e Herculano foram duas importantes cidades do Império Romano. Situavam-se na baia de Nápoles e eram as cidades preferidas pelas ricas famílias de Roma para passarem longos períodos à beira mar. Pompéia tinha cerca de vinte mil habitantes e era a preferida dos romanos, que tinham a cidade e nos arredores bem cuidadas vilas de férias. Templos de deuses romanos por toda a parte. Muitos vinhedos ao redor da cidade com produção de vinho considerável para a época.

— Quando foi isso, vovó?

— Ah, esquecia-me de dizer. O que estou contando pra vocês aconteceu no ano 79 do nosso calendário, que começa com o nascimento de Jesus de Nazaré. Jesus Foi crucificado no ano 33, e se ele estivesse vivo, estaria com 79 anos. Mas esta história nada tem a ver com a vida de Jesus, é só pra comparar.

Vovó prosseguiu.

Na região, entre as duas cidades, estava o monte Vesúvio, com um vulcão mais ativo da Europa. Naquela época, já fazia muitos anos que o Vesúvio estava quieto, aparentemente sem vida. Herculano ficava vinte quilômetros ao norte do vulcão e Pompéia, mais próxima, ficava a apenas dez quilômetros.

A erupção foi registrada por Plínio, escritor da época. Teria sido de manhã, e foi uma erupção tão surpreendente que as pessoas não tiveram sequer a chance de fugir. O calor foi a causa da morte das pessoas e animais e de todas as plantas. Calcula-se que antes da que das cinzas, o calor tenha atingido 250 graus. Foi suficiente para causar a morte instantânea, mesmo daqueles abrigados em construções. Queimou tudo.

Em seguida a população e as construções de Pompéia foram cobertas por doze camadas deferentes de lava e cinza, que caiu durante seis horas e totalizou 25 metros de profundidade.

Um silêncio profundo e sinistro desceu sobre toda a região enterrada desta forma. Havia navios da marinha imperial romana atracados em Micena, um porto do outro lado do golfo de Nápoles, que se deslocaram para o local da tragédia, mas nada mais havia a fazer. Estava tudo coberto por um lençol mortal de cinza e lava.

— Então, se tudo ficou coberto, como é que se sabe do que aconteceu? — perguntou Tuniquinho.

— Depois que as grossas camadas de cinzas cobriram Pompéia, Herculano, estas cidades foram esquecidas, seus nome e localizações não foram mais mencionados, pois parecia que o lugar seria maldito. A primeira vez em que parte delas foi redescoberta foi em 1599, quando a escavação de um canal subterrâneo para enviar água à cidade. Os trabalhadores encontraram acidentalmente muros antigos cobertos de pinturas e esculturas. Isto mais de 500 anos depois da tragédia.

Vovó parou um pouco, esfregou os olhos e secou as lágrimas. Emocionada.

— Então refizeram as cidades?

— Não. Os arqueólogos foram desenterrando, limpando os lugares, e hoje as ruínas de Herculano e Pompéia são famosas. Muita gente vai á Itália só para visitar essas ruínas.

— O tio Gordo falou de Sal... Saler...

— Salerno.

— Isto. Salerno. também foi destruída pelo vulcão?

— Não, respondeu com paciência a vovó Bia. Salerno é nossa cidade natal, onde eu, Francisco e Nicola nascemos. Fica um pouco mais ao sul. Mas nada tem a ver com o vulcão. É assunto prá outra noite, va benne?

— Ah, vovó, conta...

— Não, agora já é hora de dormir. Vamos cada um prá sua cama.

Os cincos ouvintes levantaram-se e foram se despedir de todos:

— Bença, papai, bença, mamãe, bença tio Gordo.

— Deus abençoe.

— Bença, Vovó, bença tio Armando, bença Madrinha.

— Deus abençoe a todos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 4 de outubro de 2.016

Conto # 964 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

27º. Da Série “Histórias de Vovó Bia”.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/02/2017
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