Indestinados

Era como uma dislexia dos sentimentos. Começava súbita, sem pedir licença, apossando-se de tudo que estivesse ao alcance, como uma enxurrada de lama. Eu empalidecia sem saber, meu sangue circulando no sentido reverso. As orientações dadas pelo corpo, de razões sub-reptícias, conduziam os processos químicos e biológicos à desintegração da vida. Pensar era como a morte. É claro que a energia, que não se perde, era absorvida por ele: ele se fortalecia daquela gangrena. Bebia o balbuciar das minhas pseudopalavras como um elixir. E o fazia com elegância e humildade. Era impiedosamente bom, embora devastasse sem saber. A posição mais confortável é a de ornar a existência como uma virtude. Ser venerado como o ar puro e a terra fértil.

Contudo, ainda que empossado desse amor, sentia-se vazio. A devoção lhe era inevitavelmente insignificante. Tentara sentir, reconhecer-se na projeção lisonjeira, mas via apenas um exagero vulgar. A verdade é que sentia-se indigno. A tentativa de amar já é, por si, um fracasso.

Os dois presos em um jogo de perder. Falando um dialeto descontextualizado, um texto árido, de beleza opaca. Seria bom que acabasse logo aquele momento. O dreno de qualquer sentimento bom que escoava por um ralo sujo. Que esquecêssemos que existíamos um para o outro, para que assim pudéssemos nos libertar da visão de nós mesmos, já tão condicionados. O que se espera de alguém senão que cumpra o papel que lhe demos?

As feições turvas e os gestos desconexos. Um silêncio que olhava para o abismo. Eu sentia culpa pela forma de ver o amor, tão unidimensional, acrítica, objetificada. Já ele, embora nunca o tivesse dito (por pura apatia), admirava essa pureza, essa clareza. Eu sabia onde queria chegar. Eu sabia e isso o assustava tanto! O comprometimento com o tempo futuro era, de uma só vez, a realização de uma vida e a morte das possibilidades. A certeza era insustentável em uma mente de desordens; e eu via a beleza naquele caos.

Se tomássemos o ponto de vista um do outro, enfim compreenderíamos. Seríamos cúmplices.

Olhamos em volta. Era possível sentir o desconforto como uma náusea. Eu, exaurido; ele, incapaz. Ambos violentamente conformados. – "Fazer o quê". Sorrimos. Indestinados.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 31/01/2017
Reeditado em 28/03/2017
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