Grimpa da mangueira

Enquanto todos dormem, abre a porta e vai ver a madrugada. Os galos cocoricam ao longe no relógio da noite, enquanto os grilos crilam e há pegadas urgentes de sacis-garrafa coladas no chão. Espíritos de músicos antigos, barbudões e desligados, executam melodias saudosas nos galhos e folhas das árvores, passando de carona no vento.

Não se assuste. Seus ouvidos são velhos conhecidos das músicas da hora e suas narinas sentem o cheiro velho de tais passos. Não há o que temer, lhe diz o corgo mensageiro, não há o que temer, lhe dizem vozes outras vindas de lugar nenhum. Como temeres a ti mesmo, se és parte disto tudo aqui, lhe dizem as vozes d'água. Como?

O cheiro da terra, o barro mole, o cheiro da erva-cidreira, a melodia roçando os espaços dos minutos, a escuridão da terra e as claridadezinhas respingadas lá no céu, como descuidos de pintor... Via Láctea. Pra lá é que há de ir. Sempre sonhou com festas no caminho branco de leite e até seu pai lhe prometeu um lindo de um potrinho para andar por lá. Via Láctea, pra lá é que há de ir.

Via Láctea... Nome bonito que estava no livro. Sobe à mangueira do tronco mais grosso e sente no rosto direto o bafo do vento. Que bom! E a mangueira vai como um navio, quietinho ele, os olhos fechados, seu navio vai sozinho, capitão pode ir dormir, estamos indo para a Via Láctea, atenção, atenção, terra à vista, é a Via Láctea...

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Seu Gercino

Seu Gercino, quando o procurou pela manhã, quase morreu de susto. Só calmou quando vieram dizer que tudo estava bem, e que o garoto tinha dormido na grimpa da mangueira.

(Brasília, DF/julho/1974)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 26/01/2017
Reeditado em 10/02/2017
Código do texto: T5893562
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