Viagem ao Mais-Além

Quando Ruiz repetiu aquilo, um relâmpago frio gelou as nossas espinhas. Há coisas que se dizem, sobre as quais se discute, sobre as quais se delineiam possibilidades, mas que devem ficar nos livros ou na cabeça dos pioneiros. Mas Ruiz estava mesmo deliberado a tentar a experiência maior, a que ninguém da Ordem havia ainda tentado, e não havia entre nós quem pudesse impedi-lo.

Era definitivo. Não havia o que discutir, estava decidido, Ruiz era o Sumo Sacerdote. Numa, Maceo e Leda se elegeram imediatamente os Diretores. Eram os mais experientes. Passamos ao quarto das cerimônias, as luzes se apagaram, algumas velas foram acesas. Ruiz já se ajeitara na cama espartana que sempre esteve naquela sala, mas sempre fora usada como assento, enquanto alguma cerimônia de rotina se desenrolava. Naquele momento, ficou claro que ela não estava aliá à toa, que estivera, ao contrário, sempre esperando para ser usada na real serventia. Era o momento, portanto.

Luzia é uma emotiva de primeiro grau. Tanto é que nunca pôde subir os degraus da Ordem além do Grau Médio, o que muito lhe dói. Ao ouvir o que Ruiz determinava, seus olhos já quase pipocaram das órbitas. Tinha conhecimentos, sabia que em toda a existência milenar da Ordem ninguém tinha tentado a Experiência, considerada, sim, como algo possível, mas que permanecera apenas isso, nada além de uma hipótese.

Ruiz era dos mais avançados nos trabalhos de superação do Passado. Sua reconciliação com o já vivido garantia-lhe um futuro esplendoroso nesta existência e um Mais-Além de Iluminado. Tinha, no entanto, a tal dívida com o pai e queria resgatá-la. E, depois de muito refletir, resolveu ir ter com ele, resolveu buscá-lo, mesmo sabendo que poderia encontrá-lo nas Sombras, na empresa mais audaciosa de toda a História, talvez. Aníbal, Júlio César, Alexandre, todos foram grandes a seu modo. Mas nenhum deles se arriscou a pagar uma dívida no fundo dos Infernos.

Era ao que Ruiz se propunha. Era o que a Ordem dizia possível e mesmo recomendável. Na sala semi-iluminada, de olhos fechados, ele e os Diretores, a respiração de cada um se ouvindo, descompassada, ansiada, em fluxos e refluxos, cada vez a intervalos menores, indo e vindo nas ondas do Mais-Além.

Luzia, os olhos arregalados, acompanhou cada mínimo gesto de Ruiz, até que a respiração dele cessou de todo, acompanhando as invocações dos Diretores, naquela língua litúrgica, meio aciganada e diabólica, da qual ela não entendia nada vezes nada...

A um determinado momento, ela percebeu que Ruiz já não estava ali naquela sala. Era apenas um corpo, um corpo cujo dono viajava pelas regiões do Mistério, das nossas eternas e vãs especulações. Ele tinha ido, mas ela se perguntava, com um nó na garganta, se os Diretores conseguiriam trazê-lo de volta. A viagem duraria três minutos dos vivos, sabe-se lá quantos milênios dos mortos. Luzia contava os segundos mentalmente, porque nem os olhos podia abaixar para o relógio nem o braço levantar para botar o relógio na frente dos olhos, pregados que estavam naquela cama, naquele corpo, naquela cena.

Devagar, porém num crescendo incontrolável, de suas entranhas veio vindo. Era também um grito, mas era mais que isso, era o Medo, era o Negro, era o Intocável, que explodia dela, que era parido dela, em toda forma possível, em contrações epilépticas, em baba, em sangue, em grito, em choro, em lágrima, em um impulso inadiável de sair dali, de correr dali, de morrer ali também, morrer como aquele viajante, como aquele expedicionário Ruiz, que não voltava àquele lugar macabro ao final dos três minutos esperados, aquele viajante que tinha ousado, que, porém, já não podia ouvir as Invocações Mentais do Retorno, queria morrer como aquele que, por certo, tinha errado o passo, tinha pisado em falso e escorregado na Ladeira das Sombras, para sempre, eternamente, seu amor secreto.

Fomos todos presos sob a acusação de suspeita de assassinato, julgados, condenados. Luzia foi a testemunha principal. Quando começou a chorar e a gritar – o que foi fatal para Ruiz, pois quebrou-se a cadeia mental e vital entre ele e os Diretores – pediu socorro à vizinhança, a Polícia apareceu e nos recolheu a todos, em flagrante delito, segundo eles. Apesar de ter enlouquecido, o testemunho de Luzia foi aceito plenamente. Não houve apelação. Condenados à pena capital, morremos juntos numa manhã fria e clara, quando os botões das goiabeiras esparramavam pelo campo um cheiro doce de vida e borboletas.

A Ordem, como em outras eras, foi perseguida e exterminada numa região do mundo. Reaparecerá, como noutros tempos, em outro lugar, sob outra forma, inexterminável que é.

(copiado do Diário de Áron)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 24/01/2017
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