944-QUEBRA QUEBRA NA MADRUGADA EM SAN FRANCISCO - VIAGEM

Enny e eu voltamos tarde ao hotel, na noite de quinta feira, dia 23. De julho. 1981. Estávamos cansados de caminhar nas ruas geladas. Caímos na cama e adormecemos de imediato.

De repente, fomos acordados por gritos e barulho de objetos sendo quebrados. Estremunhados, descerramos com cuidado as cortinas das janelas. O barulho vinha de um apartamento no prédio fronteiro, situado um nível abaixo do quarto que ocupávamos. As luzes estavam acesas e pudemos ver claramente o que estava acontecendo.

Uma cena típica do american way of life: o forte americano, alto, loiro, cabelos longos e barba por fazer, estava quebrando os objetos do apartamento. Parecia embriagado e a cada objeto arremessado contra as paredes, soltava um grito de guerreiro kung fu. Numa seqüência rápida, acabou com os objetos sobre os móveis. Passou, então, a quebrar os próprios móveis. Assustei-me de fato e Enny, sem querer, gritou, quando o aloprado jogou o aparelho de televisão contra a janela, estilhaçando os vidros, quebrando o caixilho. O impacto sobre o asfalto da rua arrebentou o aparelho em mil pedaços.

— Vamos avisar a portaria do hotel, eles têm de chamar a polícia! — Enny estava apavorada, jamais havia visto coisa igual.

— Calma, querida. O porteiro lá em baixo já deve estar tomando as providências.

O bêbado continuou jogando coisas através da janela: aparelhos de rádio, uma pilha de long-plays, uma cadeira, uma mesinha de centro. Sempre gritando, foi para o quarto, com janelas de vidro através das quais vimos quando o homem abriu os armários e iniciou uma limpeza geral, jogando roupas, calçados, enfim, o que encontrou pela frente, pelas janelas de vidro estilhaçado..

A cena, por si só, era de uma dramaticidade única. A nota surrealista veio a seguir, quando apareceu, vindo não sei de onde, um casal de velhinhos com um carrinho de supermercado. Entre um arremesso e outro de objetos e roupas, o velhinho corria por entre os cacos e estilhaços, e ia pegando o que podia. Principalmente roupas e calçados. Com agilidade inesperada encheu o seu carrinho. A mulher, diligentemente, ia acomodando a “mercadoria”. Até que uma peça de mobília do quarto arrebentou-se bem perto do velhinho. Uma praga intraduzível chegou até nós, que assistíamos à cena meio dantesca, meio burlesca.

Tudo numa rapidez vertiginosa. Em seguida ouvimos as sirenes dos carros policiais que chegam ao local do quebra-quebra. Eram quatro viaturas, cada qual chegando por uma rua diferente, chegando à esquina ao mesmo tempo, como se cronometradas.

— Putz, o cara tá ferrado! — Falei.

— Olha só quantos policiais estão descendo do carro. Vão acabar com ele. Coitado! — Enny mostra pena do baderneiro.

Surpreendentemente, apenas uma viatura com dois policias permaneceram no local. As demais, ao notarem o tipo de desordem, se foram. A aquela altura janelas dos edifícios adjacentes estavam com as luzes acesas: diversos vizinhos assistiam ao espetáculo. Do próprio edifício onde estava o destruidor, desceram alguns moradores, que se encontraram com os policiais. Parece que o maluco não tinha mais o que quebrar e parou de jogar coisas pelas janelas.

Os policiais subiram até o apartamento. Vi quando entraram e partiram para cima do cidadão, visivelmente embriagado. Subjugado, foi levado para a rua, carregando uma vassoura e uma pá de lixo. Ainda cambaleando, foi obrigado a limpar toda a rua, catando os pedaços maiores, varrendo os pequenos estilhaços. Colocou tudo dentro do enorme recipiente de lixo que são usados na cidade. .

O trabalho durou mais de meia hora. Os velhinhos desapareceram tão misteriosamente como chegaram , com seu carrinho lotado de coisas catadas ali.. Pouco a pouco, as luzes da vizinhança foram se apagando.

— A bebedeira do cara até já passou, depois dessa tarefa de limpeza.

Enny voltou a deitar-se. Mas fiquei observando, curioso para ver até o final dessa estranha ocorrência.

Após limpa a rua, subiram policiais e baderneiro para o apartamento. Os agentes da lei conversaram com o infrator, que, então, parecia estar sóbrio. Um policial escreveu numa prancheta, talvez um formulário. Passou para o desordeiro, que também escreveu (assinando?) algo.

Os agentes da lei simplesmente desceram do apartamento, deixando ali o autor do quebra-quebra. Entraram no carro e saíram desabaladamente, a sirene plangente quebrando o silêncio da madrugada.

Antonio Roque Gobbo

BELO HORIZONTE, 24 DE MARÇO DE 2016-

Conto # 944 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

(adaptação de conto 074-Na Madrugada – s0bre o mesmo fato)

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/01/2017
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