942-CONVERSAS TEOSÓFICAS-

Introspectivo, não gostava de conversar. Respondia o que lhe perguntavam e mesmo assim, quando o assunto não era de seu interesse, fingia não ouvir.

— Acho que Pedrinho está ficando surdo. — comentava a mulher, quando ele não dava respostas às perguntas corriqueiras, sem importância.

Passava horas e horas na marcenaria no fundo do quintal, trabalhando com dedicação e completamente esquecido do mundo. Atendia calado aos chamados da esposa para o almoço ou para a hora do banho da tarde.

No atendimento das clientes que iam encomendar móveis era parco nos comentários. Recebia as informações, muitas vezes, as fotografias coloridas recortadas de revistas, de móveis como elas desejavam. Combinava o preço, e só. Era cortês e educado, mas não esbanjava palavras desnecessárias.

Havia, entretanto, uma pessoa com quem se assentava para conversar e desenvolver longos papos: o gerente da empresa de eletricidade local. Seu Tony era afável e gostava de papear. No seu escritório no segundo andar do edifício administrativo da empresa sempre que tinha oportunidade pegava alguém para conversar. Curioso, sabia de tudo um pouco e tinha uma maneira agradável de cativar o interlocutor, fazendo perguntas provocativas.

A amizade entre os dois começou quando a empresa de energia necessitou de serviços de um marceneiro. A proximidade do escritório e da marcenaria foi fundamental para a amizade entre os dois profissionais.

Pedro, o marceneiro, havia sido seminarista na juventude porém como católico ó praticava a assistência à missa aos domingos. Já o gerente Tony era presbiteriano. Por paradoxal que possa parecer, foi essa diferença de crenças religiosas que aproximou os dois para longas conversas em tardes de pleno expediente ou nos bancos do Jardim Novo.

A encomenda de um serviço de marcenaria cumprida com presteza e capricho foi o começo da amizade que os levou às boas conversas nas quais predominava exatamente sobre o que pessoas evitam discutir: a religião.

— Mas porque não prosseguiu no seminário? — Perguntou Tony.

O que seria apenas uma resposta simples levou a uma explicação cuidadosa:

— Gostava dos professores e de estudar. Mas nunca gostei dos rituais, sempre achei um exagero. Por exemplo, transformar a representação da última ceia numa cerimônia com cálices de ouro e paramentos bordados de pedras preciosas não é verdadeiro.

— Nosso culto na Igreja Presbiteriana é bem mais simples e mais fiel à narrativa da Bíblia. — Tony explicava particulares dos rituais de sua igreja, sem fazer proselitismo.

— E nunca acreditei na transformação da hóstia e do vinho em corpo e sangue de Jesus. É um “mistério” que não me convenceu. Aliás, esta questão de comer o corpo do deus para adquirir suas qualidades e propriedades, é coisa de religião muito primária.

— Mas você freqüenta a missa?

— Sim, respondia Pedro, mas é para levar meus dois filhos. Acho que a religião é uma boa guia para desenvolver a espiritualidade. Precisamos ter uma base espiritual, e nisso qualquer religião é boa. Mas paro por aí. Pois nenhuma religião dá liberdade ao fiel para divergir dos dogmas, e então fico pensando: porque a religião deve manter o fiel num cabresto a vida toda?

— Quem não segue sua religião, qualquer que seja ela, ao pé da letra, se torna anátema, um maldito, que deve ser expulso. Foi o que aconteceu com Lutero. — disse Tony, concordando com seu Pedro.

— Pois então, assim me senti nos últimos anos que passei no seminário. E outras questões foram me atormentando. Céu, inferno como “lugares” como se no Universo existissem sítios específicos para os bons e os maus. E o a idéia de purgatório é ainda mais bizarra, pois em um lugar em que se passa “um tempo”. Ora, no Universo não existe fração de tempo.

— Mas como punir os que prevaricam, os que cometem crimes? Aqueles que pecam?

— Não me atrevo a pensar que o homem, uma criatura de corpo e espírito, ou alma, vá viver eternamente padecendo no inferno pelas faltas e crimes que cometeu num ligeiro momento de sua vida espiritual. Não faz sentido Deus ter criado o homem para depois jogar seu espírito no inferno.

— No credo dos católicos fala-se em reencarnação dos mortos. Talvez o espírito re-encarnado possa usufruir das benesses do céu como sofre as maldições do inferno.

— Este nosso corpo físico é apenas uma casca, um invólucro. Quando o corpo morre, acabou, vira pó e não tem sentido pensar em re-encarnação. Já pensou que retrocesso seria? Que tal a idéia de Jesus Cristo ressuscitado de corpo, bem como sua mãe, Maria, que teria sido elevada aos céus de corpo e alma, convivendo com Deus, anjos e outras entidades puramente espirituais? Com todas as necessidades corporais, fisiológicas? É de rir.

— Dogmas são dogmas. A gente deve crer como “mistérios”. — Tony provocava Pedro.

— Aí é que a coisa pega. Quando não há explicação lógica, então vêm os tais mistérios, e a crença obrigatória, a fé, no que é propalado. A fé em “mistérios” significa a total falta de liberdade de se discutir o assunto.

— Os fiéis católicos rezam o credo todos os dias, faz parte da missa.

E Pedro argumentava:

— É chamado de Credo dos Apóstolos. Foi criado pela Igreja Católica para subjugar os crentes à doutrina, que também é criação dos cardeais, papa, e dos dirigentes da Igreja. Veja, por exemplo, o Julgamento Final. Jesus Cristo virá (segundo o Credo dos Apóstolos) uma segunda vez para “julgar os vivos e os mortos”. Mas que idiotice é esta? Os atributos de Deus são criações dos humanos, de acordo com nossa humanidade. Deus não é justo, nem poderoso, nem fiel, não é nada disso que nós, os humanos, julgamos ser atributos divinos. São qualidades inerentes à nossa humanidade. Deus está acima disso tudo. Jesus pregou um único atributo de Deus, que é o amor.

— Mas sem a justiça divina, todo o conjunto de mandamentos, de obrigações, de leis divinas deixa de fazer sentido.

— Claro — respondeu Pedro. — Aliás, existe uma indagação filosófica que jamais ninguém poderá responder.

— Qual é?

Pedro, não querendo encerrar a conversa, mas na verdade pondo um ponto de interrogação para futuras divagações teosóficas entre os dois amigos, disse:

— Foi Deus quem criou o homem ou o homem que criou Deus?

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 4 de Março de 2016.

Conto # 842 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/01/2017
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