DIFUNDINDO O HABITO DA LEITURA (1. A Fronteira (Coelho Neto)
Livro de Coelho neto e 0lavo Bilac contos pátrios editado em 1931
1. A Fronteira (Coelho Neto)
Noite alta e morna: o rio rolava vagarosamente as suas grandes águas, e a veneranda seiva, de troncos virgens, enchia a solidão com o seu murmúrio solene, quando chegou ao povoado um cavaleiro. O animal, que ele cavalgava, humilde e arquejante, denunciava um longo e desabrido galope: e a pressa com que saltou da cela à porta da primeira cabana, fechada e silenciosa, fazia suspeitar que algum acontecimento grave o levava a empreender tão arriscada viagem, através da floresta percorrida pelos animais bravios.
Bateu com força e, como não lhe respondessem, bateu de novo: falaram. — Abre!— bradou imperativamente. Logo rangeu o ferrolho, e num raio de luz apareceu no limiar da porta a valida figura de um sertanejo trazendo apenas sobre o corpo uma camisola ampla que lhe chegava aos pés.
— As nossas terras vão ser tomadas: — disse o recém-chegado, antes mesmo de saudar o sertanejo. — Vim por essas matas a todo galope para ver se ainda chegava a tempo de prevenir-vos.
— Vão ser tomadas! — exclamou o outro, pasmado.
— Sim. Estrangeiros efetuaram um desembarque e vêm pela floresta, armados.
— E então? Que havemos de fazer?
— Armemo-nos.
— Quantos são eles?
— Não sei: o número pouco importa, o necessário é que nos defendamos.
— E se eles forem muito superiores em numero?
— Não importa. Se eu aqui vivesse isolado, da porta da minha cabana faria fogo sobre os invasores até cair atravessado por uma bala. Somos ao todo vinte e três homens, eles são talvez duzentos... mas vamos! Arma-te e vem: acorda tua mulher e teu filho, eu vou prevenir os mais.
O sertanejo esteve algum tempo hesitante. O murmúrio da floresta crescia com o vento, dando, por vezes, a ilusão de tambores rufados, ao longe.
— Eles aí vêm...
— Eles aí vêm: não há tempo a perder! Se morrermos, todos os nossos corpos ficarão marcando a fronteira da Pátria. Pelas nossas ossadas e pelas cinzas das nossas cabanas, os que vierem mais tarde conhecerão o limite do Brasil. Vamos! Falta-nos uma bandeira; temos, porém, o céu, o grande céu; e o choro assustado de nossos filhos excita-nos mais do que os clarins de guerra. Vamos!
— Vamos! — bradou o sertanejo, correndo a buscar a sua arma de caça.
Quando luziu a madrugada formosa, todos os homens do povoado estavam de pé, de arma em punho, entrincheirados, esperando o invasor.
As mulheres intrépidas, que não haviam querido deixar os maridos, apertavam ao colo os filhos que dormiam, e todos os olhos estavam cravados no caminho onde deviam aparecer os estrangeiros.
Era quase meio dia, o sol abrasava, quando os primeiros soldados surgiram tranquilamente, pisando com orgulho a terra que julgavam abandonada: á frente caminhava o oficial garboso, fazendo brilhar ao sol a espada nua. Mas um grito atroou: — “Viva o Brasil!” — e logo uma descarga retumbou no silencio. Os invasores, surpreendidos, recuaram: eram em numero muito superior ao dos que defendiam a terra natal, posto que cinco deles já escabujassem no solo alcançados pelas balas certeiras dos sertanejos.
Ressoaram clarins, e, em fila cerrada, os invasores avançavam: nova descarga, porém, fez que retrocedessem, deixando no campo novos mortos.
E não viam o inimigo; davam tiros ao acaso, aterrados, como se se batessem com o sobrenatural, até que uma nova descarga os colheu, sendo atingido o oficial, que rolou por terra moribundo. Desanimados, os invasores recuavam, sempre atirando ao acaso, sempre perseguidos pelas balas dos que defendiam a terra da pátria, até que alcançaram os barcos e precipitadamente passaram á outra margem. De longe, então, atravessando as águas, viram aparecer os heróis que se haviam batido entrincheirados nas próprias cabanas, tendo ao lado as mulheres, os filhos, os velhos pais que os animavam. E a selva grande e veneranda parecia aplaudir os seus filhos valentes com a sua grande voz murmurosa e constante. E até alta noite, enquanto abriam covas para enterrar os inimigos mortos, bradavam delirantemente, vitoriosamente: — Viva o Brasil! — contentes por haverem defendido a fronteira, da qual eram os guardas fieis, contras as mãos rapazes do estrangeiro.
Referencia: BILAC, Olavo & NETTO, Coelho. Contos Pátrios. Francisco Alves, RJ, 1931, 27ª ed. (ilustrado por Vasco Lima)