Me implora pra ficar
Uma palavra que fosse, mas não disse nada. Apenas desejou boa viagem – e parecia sincero. Ela aperta contra o peito a bolsa com o cartão de embarque dentro e aguarda a chamada. Os olhos buscam, mais uma vez, o relógio do aeroporto. Faltam cinquenta minutos para o seu voo. No quadro das partidas e chegadas, nome de cidade que não acaba mais, horários e locais mudando sempre, cada vez que a voz maquiada do serviço de som anuncia alguma coisa. O mundo é enorme, a gente - pequenina - é uma só.
Folheia a revista que não lê. Cheiro de nova. Qualquer ruído de passos se aproximando a distrai. A cabeça gira, volta à revista, volta ao quadro, volta ao relógio, à gente sentada ao seu lado, todos esperando. Uma palavra que fosse... Mas que fosse logo.
A bagagem já foi despachada. Aproxima-se a hora da decolagem. Trinta e cinco minutos? E se alguém, como no cinema, a polícia, por engano, a prendesse? Uma detenção, um interrogatório, se atrasaria, o avião não iria esperar... Ou iria? Uma chance a mais. E não seria culpa sua. Voltar dos Estados Unidos, não. Isso não iria acontecer. Sua irmã já tinha tudo arrumado, lá era mamão com açúcar. No anular esquerdo emagrecido, a aliança frouxa escorrega até o nó do dedo. Uma palavra que fosse... Que fosse, então, agora. Já.
Quando a voz maquiada chama o seu voo, ainda olha para os lados. Levanta-se. Tipo charme discreto, mesmo sem precisar, tira os cabelos do rosto. Olhada rápida, desencargo de consciência, última vez. Dinheiro miúdo nem restinho de esperança vão servir no estrangeiro. Tem que gastar aqui seus últimos centavos de tudo.
Ao pegar a fila, lembra-se dos bois indo para o matadouro. Mas vai pra Nova York. A mão direita esfrega a aliança para cima e para baixo, gesto obsceno. O relógio do aeroporto podia estar adiantado, vira-se, sai da fila, ainda dá tempo de ir à lanchonete. (Quem sabe o trânsito, choveu muito de madrugada)
- Mineral com gás, por favor.
Embarcando sim, fazer o que? O último degrau da escada. Os comissários de bordo recebendo na porta do avião, as moças pintadas, impecáveis, de roupas passadinhas. (Já houve caso de atrasarem o voo por mil razões, boato de bomba, doença, morte de passageiro... Será que por alguém que desistisse de viajar, já dentro do avião, o voo fechado? Só em filme, na certa.).
Todos acomodados, o piloto dá as boas vindas pelo som interno, manda apertar os cintos e não fumar. Começam as instruções de segurança. Faz o que mandam, engole em seco, agora nem com mil palavras. "It's too late, baby!". Olha pela janela, de relance percebe o chuvisco na pista, mas ninguém tentando interceptar o avião, tira a aliança e a põe na bolsa. Suspira fundo, balança a cabeça. Com o coração e o anular esquerdo livres, pela primeira vez em muitos anos, abre a revista e se concentra numa reportagem sobre a vida noturna em Manhattan, restaurantes, night-clubs, teatros, diversões para solteiros, essas coisas todas que vai ter de conhecer de novo, daqui para frente.