Mesmo com um dedo a mais...
Seu sonho era ser presidente, mesmo com um dedo a mais. Em Brasília havia uma família com seis dedos em cada mão, o que não atrapalhava em nada na vida diária, nem para tocar violão. Um desses irmãos, que nascera só com os dez dedos habituais, cinco em cada, sentia-se excluído, verdadeiro deficiente, pra vocês verem como tudo é mesmo relativo. Mas o caminho de ser presidente, Ele sabia, a estrada era longa, uma subida de serra que só quando se estivesse chegando ao topo se poderia avaliar se valia a pena seguir em frente ou desistir de vez. Conheceu Bolas e Pavão na Faculdade de Filosofia, em 1969. Aquilo era um valhacouto de subversivos, mas em vinte anos os subversivos podiam ser governo. E foram. Era bom não brigar com eles sem retorno, tentar dialogar sempre. Mostrar que tinha conhecimento, posição etc etc, mas não afastar um possível aliado. Podia ser um diferencial no futuro. Política era assim.
Aquele Jurandir, por exemplo, menino atirado, acreditava que sabia tudo. Atirado que eu digo é aquele que não tem medo, que diz o que pensa, que entra nas confusões, sai lanhado, mas sai de cabeça erguida. Pois não é que Jurandir foi a uma passeata e a polícia lhe desceu o cacete e ele voltou pro seu curso de jornalismo de braço quebrado? Na segunda-feira, ele apareceu de tipoia na faculdade, botando a boca no mundo, "o povo é carneiro, tem mais é que se ferrar". O que ele queria? Que todo mundo se compadecesse dele e, para vingá-lo, que entrasse em formação e encarasse a cavalaria, armados só de bolinhas de gude pra derrubar os cavalos? Coitado, só ele mesmo...
Pois naquele ano invadiram a Faculdade de Filosofia, era uma segunda-feira, e Ele, o sonhador de dez dedos só não ficou fechado lá dentro porque estava no interior do estado, foi a uma seresta, bebeu pinga com mel e cantou até de madrugada para uma ingrata que nunca lhe deu bola, passou mal o domingo todo e perdeu o ônibus para Belo Horizonte.
Quando sarou da carraspana, na terça-feira, voltou para Belo Horizonte, mas as aulas estavam suspensas. Para economizar, regressou a sua cidade para curtir praia de rio e continuar a fazer uma música para a ingrata. Aliás, sua folha corrida de universitário já tinha um senão: tinha faltado ao trote dos calouros e o cabelo oxigenado com que aparece nas fotos da época era uma fraude, trote "fake", talvez o primeiro da História. O oxigenamento tinha ocorrido em sua cidade natal, ajudado pela irmã. A desculpa? É que havia muita violência nos trotes.
Pois nessa época, o regime tinha se fechado, a Faculdade de Filosofia só voltou a funcionar depois de algumas semanas. Foi aí que Ele conheceu três subversivos por nome Fernando, Rodolfo e Tânia. Eles chegaram devagarzinho, ganharam a simpatia dos três inocentes interioranos, marcaram reunião perto da Escola de Odontologia, na Cidade Jardim e, logo, estavam no gramado do prédio da tia Efigênia, estudando Mao-Tse-Tung, como se chamava o Grande Timoneiro, antes da reforma ortográfica chinesa. Depois da exposição oral, entregavam apostilas aos pupilos, ou seja, o texto impresso em mimeógrafo para a memorização dos ideais que iriam salvar o mundo.
De repente, com sentimento de culpa, Ele imaginou o apartamento da tia Efigênia sendo invadido pelo DOPS, a casa revistada e, finalmente, a vitória dos agentes: debaixo de seu colchão a obra de Mao-Tse-Tung mimeografada.
- Teje presa.
No interrogatório, tia Efiênia iria se manter dignamente calada e sofrer todas as agruras que seu físico de 1,50 e 48 quilos podia aguentar, para defender seu sobrinho predileto, o que tinha tanto futuro.
Ele afastou a imagem quando viu que os agentes ameaçavam despi-la, e foi logo limpar as evidências, tirando tudo que estava debaixo do colchão dela, à revelia, e levando o papelório pra queimar na beira do corgo da futura Avenida Prudente de Morais.
Com tantos eventos correlatos em 1969, não foi difícil dar um pulinho a 1943, quando seu pai, beirando os vinte anos, entregava jornais comunistas em Sete Lagoas, e a ditadura de Vargas andava à caça de ativistas daquele tipo, para provar que a juventude estava se perdendo. Seu futuro genitor era um irresponsável, Ele podia nem ter nascido se Getúlio pegasse o pai. Ainda bem que não pegou, pois, além de Ele não nascer, seria uma grande decepção para Alexandre, seu avô, que conservava um retrato do "Velho", de todo tamanho, em sua sala de visitas.
No entanto, as precauções pararam por aí. As reuniões na pracinha da Escola de Odontologia continuaram, o doutrinamento se aprofundando, Ele, Bolas e Pavão ganhando a confiança dos três doutrinadores. Um dia, suas primeiras "missões" foram determinadas: Bolas ia subir no último andar do prédio do Banco da Lavoura, em plena Praça Sete, e atirar panfletos incendiários do terraço; Pavão ia entrar em várias livrarias, folhear livros e colocar panfletos da mesma natureza em cada um; Ele ficou sem tarefa definida, mas iria participar de alguma delas. Faltava apenas determinar a data.
Pois os dias se passaram e nada de contato de seus mestres, nada de data para entrar em ação. Tânia, Fernando e Rodolfo simplesmente desapareceram. Aos dezenove anos é fácil esquecer muitas coisas, principalmente se há música e garotas na vida dos jovens. Pois se passaram alguns meses sem notícias, até que aparecem os doutrinadores de novo, porém combalidos, magros e tristes. Tinham sido presos e torturados em Juiz de Fora e fingiram nem mais conhecer seus pupilos. Melhor assim, pensaram os interioranos. Sobraria mais tempo para serenatas e pinga com mel. E quanto ao sonho de ser presidente, mesmo com um dedo a mais, melhor também deixar pra lá. Já havia alguém se preparando para arrebatar multidões, eles podiam ficar na sombra.