O Mercedes Negro
Isabel tem na mão a pesada pulseira de ouro, único presente do pai de sua segunda filha, a que tem três anos. Nos olhos vermelhos, as lágrimas não param de rolar. A decisão já está tomada: a pulseira vai ser vendida por dois dólares, e sabe quanto vale? Duzentos dólares, amigo. Mas é preciso comprar comida pras crianças.
Sai à rua. Descendo as escadas, ensaia a maneira como vai encarar a rua, os vizinhos, os transeuntes, a cidade, o mundo. Empina o corpo, cabeça alta, não quer provocar pena. Detesta que lhe tenham dó. O caminho até a loja de empenhos é rápido. Está bem no centro da cidade, a duas quadras do apartamento pequenino onde vive com as duas filhas, a mãe e o padrasto. Caminha sem olhar pra trás. Na memória, já se esqueceu de que vendeu quase todos os móveis que tinha, recordação da vida boa que teve quando trabalhava. Pra que lembrar? É seguir em frente. Chove muito, as águas correm na beira das calçadas, sujando os sapatos, as meias, as pernas, as bainhas das calças, com esse barro vermelho que toma conta de toda esta cidade fronteiriça. Mas nada vai impedir o caminho de Isabel. Por um instante, pensa que, se vivesse ou se tivesse um dos pais das filhas por perto, seria tudo mais fácil. Mas o orgulho esbofeteia sua auto piedade e afasta definitivamente os pensamentos negativos. Agora, não dá pra recuar.
O comprador, no balcão, a olha com desprezo. É um homem de meia idade, que não se impressiona com a loura alta, de olhos verde-musgo, seios enormes, duros apesar de duas longas amamentações, as pernas apertadas dentro do jeans de cintura baixa, deixando aparecer os ossos do ilíaco e uma pequenina rosa tatuada abaixo do umbigo. Apesar da fome, porque ela também não comeu hoje, não dá sinais de fraqueza. O comprador apanha a pulseira, pede licença, entra na sala interior, demora-se uns cinco minutos e volta com a proposta: dez mil guaranis, dois dólares, mais ou menos. O musgo dos olhos pensa em chorar, mas o orgulho de mulher altaneira se rebela e não permite qualquer sinal de fraqueza. Engole a vontade ao ver a dureza do comerciante. Se fosse um homem com olhar mais doce, ela choraria. Mas a esse não quer dar nenhum prazer. Da primeira vez, quando fez a sondagem, prometeu-se nunca mais voltar ali. Por ele, em primeiro lugar, mas também porque as coisas podiam mudar. Algo bom podia acontecer, sempre se espera. Apanha os dez mil, vira as costas, mordendo os lábios de vergonha e ódio, e sai da casa de empenhos.
Apesar da fome de quase onze da manhã, para quem não tomou o desjejum, segue a pé para o mercado popular, a uns três quilômetros dali, para não gastar nenhum tostão do almoço das duas filhas nem com táxi. A chuva mal terminou, mas a umidade abafante já toma conta de tudo e de todos. O suor não perdoa ninguém e, na metade do caminho, a ligeira maquiagem que passou no rosto de manhã já se esparrama pela cara e escorre um pouco para o pescoço. Mas não vai dar o braço torcer. Nem olha para os lados, agora é tarde para que Deus se compadeça.
No mercado, olha os preços, compara, compra um pouquinho de cada coisa, uma cenoura, uma beterraba, duas batatas, um molho de cheiro-verde, uma cebola... Que seja o último dia de nossas vidas, mas vamos comer com orgulho e boca boa. Espera fazerem os pacotes, paga e caminha de volta os três km que a separam do fogão de sua casa. Lá, prepara a comida, chama as duas filhas e a mãe e comem a comida mais cheirosa e mais gostosa que já provou em sua vida.
A mãe come em silêncio. Mastiga, humilhada, com dificuldade, a comida como se mastigasse a própria pulseira da filha. A mãe não opina, mas sabe muito bem que a filha está vendendo quase tudo que tem. Vendeu geladeira, fogão, a cama de casal, e hoje dorme num sofá num quarto sem mais mobília.
De vez em quando, Isabel recebe visitas. Às vezes, são educadas, entram, cumprimentam a mãe, mas com ela mesma pouco falam. Entram no quarto dela e se trancam. De fora, a mãe ouve os cochichos. Às vezes, ouve parte das conversas quando se despedem, porque fica na cadeira de balanço, cochilando. As palavras que pesca no meio das conversas são sempre emigrar para Espanha ou Estados Unidos. Um sono permanente, um desânimo da vida como nunca teve. Um pouco por causa da doença, outro tanto pelos remédios. Tem câncer no seio, quando acabam os remédios e não há dinheiro para reposição, é o inverso: passa a dormir muito pouco por causa da dor. Estão esperando o resultado da segunda biópsia, pra saber se é maligno ou benigno, embora sempre lhe parecesse estranho que alguma coisa que invade teu organismo possa ser benigna. Mas, se é assim que chamam, vamos chamá-la assim.
Sim, as coisas estão más, porém já houve dias piores. Há três meses, Isabel tentou o suicídio uma vez, tentou enforcar-se com um cinto. Seu padrasto chegou a tempo, levou-a para o hospital, ela se recuperou. Duas semanas depois, de outra vez, já estava mirando o chão da rua com olhos de sapo hipnotizado. Do terceiro piso, pensou saltar, acabar com tudo. Quando já estava se encaminhando para a beira da varanda, escutou a menorzinha dizer:
- Mãe, você quer leite?
Escutar aquele convite foi o bastante. Do mesmo jeito que estava, virou-se e, sem muito pensar, foi logo dizendo, os olhos se enchendo de lágrimas e de arrependimento:
- Quero sim, meu amorzinho, meu bebê.
Uns dias depois, como as coisas não mudavam, os pensamentos sombrios começaram a tomar conta de novo de sua mente. Sem comida para as filhas, sem possibilidade de pagar o tratamento da mãe, foi à Praça do Bispo, ao lado de uma churrascaria e da Diocese, e começou a desafiar a Deus. Quem passava por ali podia pensar que era mais uma jovem que enlouqueceu por causa de drogas, com certeza, Mundo perdido! A moça bonita falava sozinha, dedo em riste para o céu:
- Já fiz de tudo pra acertar a minha vida. Nunca fiz nada de errado. Nunca fiz aborto, nunca roubei, nunca matei. Só quero um trabalho, uma maneira honesta de comprar a comida de minhas filhas e pagar o tratamento de minha mãe. Só isso. Só posso pensar que você não existe, porque, se existisse, não deixaria minhas filhas sofrerem. Não permitiria que minha mãe vivesse assim, com a morte dentro do corpo. Você não existe. Quem existe é o Diabo. É nele que confio. Faço até um pacto com ele pra conseguir comprar comida pras minhas filhas e conseguir pagar o tratamento de minha mãe. Faço. Basta ele aparecer aqui, aqui nesta praça, em frente da casa do Bispo.
Sim, eu os desafiei, dizia, que viesse um ou outro, enquanto caminhava em círculos pela praça arborizada.
Sei que posso pagar por ter blasfemado, mas eu estava desesperada, desesperada... Mas nenhum dos dois apareceu. Nenhum dos dois. Parecia que nem o Diabo queria me ajudar!
Ainda falando sozinha, caminhou para a rua, disposta a jogar-se na frente de um carro. Pensou outra vez em morrer em frente da casa do Bispo, com uma carta no bolso, onde ia contar por que tinha feito isso. Ali, sim, seria o local ideal pra morrer: a avenida é larga, e os carros passam voando. Ali em frente, a churrascaria onde os ricos se empanturram e desperdiçam comida. Que cena, pensava, quando o carro a jogasse para o alto, contra uma dessas árvores!
A carta ia contar que fez um pacto com o Diabo, que não acreditava em ninguém, na Justiça dos homens nem Deus... Estava parada na calçada, esperando algum sinal, alguma coisa, sem saber o que fazer, se ia atravessar para o outro lado, para o lado dos campos de vôlei e futebol, onde a juventude faz festa toda tarde, o contrário dela, que vive de luto e luta, com vinte e um anos e um século de sofrimento.
Quando me decidi a pular na frente do próximo carro, veio vindo um Mercedes negro. Estava em alta velocidade, mas diminuiu de repente, deu sinal e parou para mim. O rapaz que o dirigia tinha cara de árabe. Parecia ter uns trinta anos, usava barba e bigode. Seus olhos esverdeados me pareceram gentis e convidaram-me a entrar no carro. Pensei que ele me tinha tomado por uma prostituta, mas que tinha eu a perder? Entrei e sentei-me a seu lado. Arrancou, deu a volta na praça e estacionou num lugar tranquilo. Eu não sabia o que ia acontecer, mas não me importava. Estava pronta para qualquer coisa. No entanto, passamos a conversar e, dentro de uns minutos, já havíamos contado a vida um ao outro, começando do final. Primeiro, eu contei chorando, mas chorando mesmo, muito, muito, toda a minha tragédia, que ainda há pouco tinha pensado em morrer, que até podia ter sido o carro dele que ia me matar.
A história dele não parecia menos triste. Ele disse que era filho único, sua mãe havia deixado seu pai por um outro homem, seu pai se casou de novo, ele foi criado pela madrasta, apanhou muito, foi muito discriminado. Seu pai teve outros filhos com a nova mulher. Ela era muito infeliz, porque a madrasta o perseguia, o discriminava em relação aos outros irmãos, batia nele o tempo todo. Sua vida era um inferno.
Depois de não sei quanto tempo de um desabafo completo, ele disse que não podia mais demorar, tinha que seguir viagem e perguntou se eu tinha fome. Eu tinha muita fome, não menti. Ele parou em frente a um restaurante, jantamos e, depois, me deu cem dólares, uns quinhentos mil guaranis. Para mim, na situação que estava, era uma fortuna. Chorei muito, segurando o dinheiro nas mãos. Ele disse que comprasse o que quisesse para meus filhos, que não podiam passar falta de nada. Ele sabia o que era isso, pois, quando criança, tudo era para os outros irmãos. Agradeci-lhe, ele se despediu, dizendo:
- Moro em Assunção, venho sempre aqui. Não deixe que falte comida para seus filhos. Se precisar, me chame.
Passou-me um cartão com seu número de celular. Nunca mais o vi, porque perdi o cartão com o número e, enquanto o conservei, nunca liguei. Ele deve ter pensado que eu era apenas mais uma das ingratas que há neste mundo, que tudo talvez fosse uma grande mentira, armação para encontrar um amante rico, ou, quem sabe, tivesse simplesmente ficado satisfeito de eu não o aborrecer mais. De qualquer maneira, com a caridade que fez tinha crédito com Deus ou, quem sabe, com o Outro. Não sei. Só sei que a cena do Mercedes negro chegando logo após minhas blasfêmias, me dá calafrios: qual dos dois invocados era o rapaz do Mercedes negro?