Todo poderoso
Noite passada matei um homem. Estou lhe contando isso, na tentativa de tirar esse peso de mim. Confesso. Sim, o assassinei à sangue frio. Foi tão simples, tão rápido e não hesitei, vi que podia fazê-lo e fiz. A pobre vítima numa hora existia e na outra... má sorte... nem mesmo teve tempo de se defender ou ao menos implorar por misericórdia. Recordo-me que, durante o ato, me senti magnificamente poderoso, a morte do sujeito me fez sentir mais vivo e eu sorri diabolicamente diante da cena.
A sensação de poder e orgulho no entanto, logo deram lugar para o sentimento de culpa e arrependimento. Fiquei realmente péssimo, sentia um vazio em meu estômago e para ser honesto com você, confesso que andei chorando. E eu quis voltar atrás. Ah! Como eu quis... Passei a madrugada inteira sem pregar os olhos. Vasculhei minha mente até a cabeça doer, procurando uma solução, uma forma de reverter tudo aquilo. Eu bem sabia que poderia ter dado uma maquiada nas coisas, poderia ter usado desculpas esfarrapadas que me tirassem daquela situação. Porém, meu orgulho não permitia, estava feito... Eu havia dado cabo daquele homem para sempre e tudo o que restou dele foi aquilo que já fora escrito.
Você provavelmente está pensando que com o meu ofício, coisas assim deveriam ser corriqueiras e eu já deveria estar acostumado a matar. Bem, você está parcialmente correto. Evidentemente, este não foi o meu primeiro assassinato. Para dizer a verdade, eu nem sei ao certo lhe dizer quantos já matei em toda minha vida profissional. Por favor, não entenda isso como insensibilidade da minha parte, tão pouco interprete como descuido. Não fico contando vantagem de quantos já matei até mesmo por respeito aos falecidos. Gosto de pensar que mato apenas quando há real necessidade, para que as coisas possam funcionar da maneira que devem.
Mas então, por que esta morte não foi apenas mais uma em minha carreira? Por que me afetou desse modo? O fato é que desta vez foi arbitrário. Isto é, não havia a tal real necessidade. Matei um homem só pra ver ele morrer... Ele não tinha uma ligação direta com o meu objetivo, ele nem ao menos entrou em meu caminho. Foi como caçar em um zoológico. Foi como brincar de ser Deus, matando a esmo, dando câncer à criancinhas, atropelando idosos, explodindo usinas, causando terremotos, enchentes, tsunamis, vulcões em erupção, tornados, pestes e epidemias.
Espero não ficar viciado. Imagino a cena: sento em frente a máquina de escrever para criar mais uma história e tudo que sai é uma avalanche de mortes, assassino personagens ao acaso. “Fulano de Tal foi a padaria comprar os ingredientes para um esplêndido café da manhã. No balcão do estabelecimento ele cumprimenta o Zé Cicrano, padeiro e amigo seu de longa data. Enquanto escolhia cuidadosamente o iogurte de sabor ideal, um sujeito usando uma meia-calça na cabeça entra armado para assaltar a padaria, Zé Cicrano tenta reagir e o bandido atira nele – o padeiro morre na hora. Fulano de Tal se agacha e começa a rezar baixinho no canto do corredor de iogurtes. O bandido retira a meia-calça e pula o balcão da padaria em busca do dinheiro no caixa. Fulano resolve tentar fugir de lá correndo, se levanta e põe as pernas para funcionar, porém ao chegar à porta um segundo assaltante que estava esperando pelo seu comparsa para a fuga, avista Fulano e dispara contra ele. O tiro atingi a perna de Fulano de Tal que cai no chão agonizando. Que tipo de Deus deixa isso acontecer? Fulano pensa angustiado enquanto os dois assaltantes se juntam para fuzilá-lo ali mesmo na calçada à luz de uma manhã nublada.” Escrevo essa cena medíocre com um sorriso anestesiado no rosto. Hahaha morram, seus fracos fodidos! Ninguém pode com o escritor todo-poderoso aqui.