Um Conto de Natal

Há muito tempo, quando eu era bem mais jovem do que sou hoje, meu irmão mais velho, Peter, “presenteou-me” com um livro. Na verdade, ele o havia ganhado numa aposta, onde estavam em jogo um pião, algumas bolinhas de gude, e o referido livro em questão. Mas, naquele dia, ele o jogou por sobre a minha cabeça num daqueles atos inconsequentes de irmão mais velho que gosta de provocar o mais novo. Era uma tarde ociosa de terça-feira, e como eu não tinha nada melhor para fazer resolvi dar uma folheada naquele livro. Eu não era muito dado à leitura, e devia ter uns onze anos naquela ocasião... Fora a primeira vez em que eu realmente lia com entusiasmo uma obra, então, peguei-me surpreso ao perceber que eu gostara do que tinha encontrado dentro daquelas páginas.

Decidi, num ato imprevisto e impetuoso, que daquele momento em diante, amaria os livros. Mesmo aqueles que só nos servissem para entender, que certas coisas jamais deveriam ser escritas – isso por si só já é um aprendizado, e um bom motivo para se abrir um livro.

Então, dessa forma, eu havia decidido, ainda cedo em minha vida, que seria como os personagens daquelas fabulosas estórias que havia me encantado, e tão por acaso, caído sobre a minha cabeça – literalmente, naquela bucólica e inesquecível tarde de terça-feira. Muitas estórias e contos cativaram-me ao longo da minha existência, e eu poderia citar muitos autores e muitos livros... Mas perder-me-ia em longos e prazerosos apontamentos que fugiriam ao propósito deste manuscrito. Mas posso mencionar, em especial, Júlio Verne, e a sua infindável criatividade e visão. A sua notável imaginação trouxe ao mundo grandes romances, e sempre suspeitei que havia muito mais entre as linhas do que nas próprias letras. Às vezes os escritores usam deste artifício, e creio que ele o usara muitas vezes. Ficção científica era um gênero menor de literatura na época, mas isso não o impediu de “profetizar” invenções e comportamentos futuros.

Foi por causa de Verne que me enveredei pelos meandros da ciência, e tenha decidido ainda jovem, tornar-me um cientista. Claro que, como é de praxe na nossa vida, quase nunca realizamos os nossos sonhos: geralmente não nos tornamos facilmente aquilo que desejamos ser. A vida de fato se difere em grandes gradações das páginas de um livro. Muitas meninas sonham em serem bailarinas, mas poucas atingem este objetivo. Não se culpe por isso... há fatores na vida que não se aplicam nas páginas de um livro – dizem que o papel aceita tudo – a vida geralmente não aceita nada. E fatores como sorte, acaso, privilégios e oportunidades, geralmente são temperos jogados ao alto que se precipitarão no caldeirão da vida.

Mas, o que quero que entendam, é que nem sempre a vida precisa ser um caldeirão em ebulição, onde os elementos borbulham até evaporarem. Entendi, como verão nas linhas deste livro, que a vida é mais como um palco, onde somos artistas a ensaiarem o show da vida, e que se entendermos bem a peça, poderemos dirigi-la nós mesmos...

Mas eu também pensei assim por muito tempo – na história do caldeirão - antes de ser quem sou hoje. Haviam me dito que os nossos mais caros sonhos se vão, juntamente com a nossa infância, breve e precocemente, e eu por muito tempo acreditei. Então, como de praxe, tornei-me arquiteto, o que não era, em primeiro plano, o meu sonho de ser um cientista. Mas foi o melhor que eu poderia ter conseguido naquela época, mesmo que isso não me levasse até a lua, ou às profundezas do oceano, e ainda, às entranhas da Terra...

Com grande dificuldade me formei em uma faculdade pública da minha cidade, que sempre insistia em cobrar certas taxas “necessárias” que eu nunca tinha dinheiro para pagar, (embora eu nunca tivesse dinheiro para muita coisa mesmo). Mas o certo é que no verão de 1923 eu me formei, e apesar do meu grande esforço, teria comemorado a minha formatura sozinho, se aquela bela garota não estivesse na lanchonete, e justamente naquele dia, esbarrado em mim e me derrubado uma bela xícara de café quente com leite maltado! O destino tem formas misteriosas de trabalhar... E ele trabalhou misteriosamente comigo, naquele dia... E só para constar, o café estava especialmente quente naquele dia!

- Oh! Me desculpe! – ela disse envergonhada, com aquela voz aveludada e tímida, de quem pouco levantou a voz na vida, enquanto a neve despencava do céu e desenhava digitais do inverno no vidro da janela, e nesse meio tempo tentava me limpar azafamadamente (se é que essa palavra existe, mas eu preciso que você se acostume a palavras estranhas e conceitos estrangeiros, – ou mesmo inexistentes – e assim, de uma pequena pretensão minha em criar neologismos, mas é para tentar descrever o mais fielmente possível os meus sentimentos e impressões - como você verá, será necessário - frente às estranhas experiências e narrativas que lhe confrontarão no decorrer desta obra... Acontecimentos e experiências diferentes demais da experiência comum, que me deixaram e deixam ainda sem palavras e conceitos que possam defini-las, ou mesmo situa-las.

Ainda me lembro daquela face ruborizada, dos olhos assustados e brilhantes... E da tentativa meio sem jeito dela de me limpar e de me abanar. Mas tudo só constrangia ainda mais a nós dois, e dificilmente algo melhoraria a minha pele queimada e ardida por baixo da roupa, em lugares difíceis de descrever, até mesmo para quem já viveu coisas inexprimíveis...

- Tudo bem, não foi nada... – eu respondia, enquanto tentava ajuda-la, pensando num modo de sair dali correndo e me jogar na neve lá fora para aliviar a ardência, sem, contudo, com isso, parecer tolo ou imaturo. Mas a presença física dela ali me segurava, a aura de amor que eu sentia por ela, a despeito da queimadura e da dor, me mantinha de pé, estoicamente! Na verdade, eu me considerava um cara bastante sortudo por tudo aquilo, embora eu estivesse todo tostado e ardido em determinadas áreas que, como visto, não vem ao caso mencionar agora, eu realmente me regozijava pela situação. Veja bem, fora a melhor coisa que me acontecera em muito tempo, talvez, em toda a minha vida, até aquele dia! Afinal, foi a primeira vez que troquei palavras com ela, a linda menina que passava pelo corredor da escola e deixava um rastro de perfume doce atrás de si, como se os negros cachos de seus cabelos se entrelaçassem em mim e me rodassem feito um pião. Naquela época ela passava e eu a acompanhava com os olhos, com o nariz, e também com o tempo, com o coração. E foi assim na escola básica, na média e na universidade – para azar de meu pobre e sofrido coração. E devo tudo isso a minha timidez e ao meu sentimento de inferioridade, tão comum para um rapaz como eu, naquela época escura. Não que ela fosse esnobe ou me ignorasse, na verdade, ela era um doce de pessoa, e sempre notava a minha presença, e isso me conquistava ainda mais... Para mal dos pecados, ela me acompanhou na mesma universidade, o que fez com que eu passasse o terceiro grau todo com a cabeça nas nuvens, e os pés na lama! Mas nesse dia conversamos, efetivamente, pela primeira vez, embora fosse preciso que se houvessem passado dez anos!

Clara, era o seu nome. E entenda, nunca um nome fez tanto sentido. Ela iluminava tudo!

- O que faz aqui? – dizia sem graça, entre um esboço de gentileza, e outro de preocupação - Não está na sua formatura?!... Quero dizer... Você não deveria estar se formando hoje? – Como ela estava linda naquela roupa de garçonete...

- É... Pois é... Heim... Você sabe... – disse eu, como podem reparar, do alto da minha profunda e invejável retórica, cujo raro vocabulário era invejado pelo mais conceituado dos dicionários (ou dinossauros, como diria um velho amigo meu). E prossegui, agora com frases mais elaboradas:

- Eu não tinha dinheiro pra bancar a festa, ai você sabe... quer dizer, passei aqui pra fazer um lanche e ir pra casa. Mas... você também devia estar se formando, se não me engano...

- Se engana não... – respondeu-me ela. –A nossa situação é muito parecida. Sabe, meu patrão não deixou que eu tirasse o dia de folga... E eu preciso trabalhar. Ele disse que pessoas se formam todos os dias, e que não há nada de especial nisso...

E lá estava ele, o patrão, atrás do balcão, um velho gordo e sem muito charme social, palitando o dente com uma mão e coçando a barriga com a outra. Jogando Black Jack enquanto degustava duma linguiça frita, depois de uma baforada e meia do seu charuto, assaz fedorento. - É... Eu não poderia me surpreender. Ele não deve se importar muito com essas coisas mesmo... – comentei melancólico. - Mesmo assim, parabéns pela sua formatura! – disse apertando a sua mão delicada, mas na verdade eu queria mesmo era abraçá-la, mas não me achava merecedor de tamanha recompensa. Queria segurá-la e beijá-la, e dizer-lhe que eu havia esperado por esse momento por dez longos anos, desde que a vi pela primeira vez sentada na escada da escola. Mas é claro, eu não disse isso. Mas hoje eu não me arrependo de não ter dito. Quando se aprende que o tempo não existe, atos passados não nos pesam tanto quanto antes.

- Parabéns pra você também, então! – disse ela, sorrindo. Eu ri meio encabulado.

- Olha... Por que você não espera um pouco? Daqui quarenta minutos eu saio, e... – disse ela olhando no relógio. – então, se não se importar, poderemos comemorar a nossa formatura juntos, o que acha?

Ah... Se ela soubesse naquele dia, que mesmo que dissesse quarenta anos... ainda assim eu a esperava...

Esperei por uma hora, vinte e seis minutos e quarenta e sete segundos, o mais feliz chá de cadeira de toda a minha existência! Assim, ficamos ali mesmo, numa mesinha no canto. Tomamos chocolate quente e comemos alguma coisa da qual não me recordo bem. Nevava muito lá fora, e enquanto a janela se cobria com um manto cinzento feito névoa, e os flocos gotejavam em surdos batuques no vidro, compartilhei com ela a melhor formatura que alguém poderia querer. Eu não poderia ter sonhado coisa melhor.

E assim, claro que começamos a namorar, e depois daquele dia, saímos muitas vezes mais. Os jardins da cidade não nos suportavam mais. As pracinhas, os parques, estávamos em todos! Éramos a alegria dos vendedores de algodão-doce, sorveteiros, pipoqueiros, pombos, moleques travessos, vendedores de flores, mendigos, enfim... Todos aqueles que de alguma forma angariariam algo com o nosso amor. Eu comprava de algodão doce multicor à flores de papel, passando de laço pra careca a guarda-chuva de peneira. Não havia algo ou alguém, acontecimento banal, ou não, dos quais não tirávamos relações deles com o nosso amor. E finalmente eu entendi o conceito de um amante que presenteia o outro com a lua. Pois foi só a partir daquele momento que eu passei a percebê-la no céu. Brilhante e absoluta, como jamais a mesma se havia apresentado a mim!

Eu quero e preciso que entendam o meu amor por Clara, por isso me delongo nesta descrição que muitos podem achar enfadonha e piegas. Mas não entenderiam os caminhos que tomei nesta história e a minha coragem de enfrenta-los, se não entenderem o amor que sinto por ela. Naquela época, eu ainda não sabia nada sobre destino, sincronicidade, e outras palavras que sequer existiam, e que hoje representam o mesmo que dizer que, não existem coincidências, tudo tem a sua razão, o seu porquê. E se algumas vezes, neste livro, me virem pulando num abismo, ou enfrentando um monstro indescritível, coisa que ser humano nenhum em sua sã consciência – se é que alguém algum dia teve consciência sã neste mundo – faria, saberão agora o motivo. Alguns livros religiosos mundo afora dizem que o amor é a força mais poderosa de todas. Acreditem em mim, eles estavam certos. Verão isso aqui. Ele transforma alguém muito comum, em alguém que mal poderia se reconhecer mesmo frente ao espelho.

O tempo passou, como tudo nesta estranha terra, e neste meio vago, entre o ontem e o amanhã, encontrei um bom emprego, coisa rara nos tempos pós guerra... Não íamos mais com a mesma frequência àquela lanchonete de esquina, levei-a em lugares melhores. Mas eu não me esquecera de que foi lá que efetivamente conheci Clara, e vez ou outra, voltávamos ao nosso velho cantinho, para recordar o nosso primeiro encontro, inesperado, claro, mas ainda assim, o primeiro. E ainda que lá continuasse a ser uma espelunca de primeira, e o velho gordo e o seu charuto fedorento ainda davam o ar de suas graças, aquela era a “nossa” espelunca. E assim foi sendo carinhosamente chamada, não num tom depreciativo – não que ela não merecesse -, mas mais pelo charme romanesco que o adjetivo evocava. Não podia ser diferente, foi onde tudo começou. E como presumo que tenham uma fértil criatividade, já devem estar imaginando, que foi também onde a pedi em casamento. Demorou um pouco, (ora, o que é o tempo?), mas não que eu não a amasse, só queria esperar para ter as condições de dar a ela uma vida melhor do que a que eu andava levando, uma em que ela não precisasse colar o umbigo naquela chapa de hambúrguer de domingo a domingo, e naquela altura, eu já podia.

Para compensar o atraso, casamos na melhor igreja da cidade – não que fosse grande coisa - com a mais bela festa de que tiveram noticia os fofoqueiros de plantão. Para levá-la até a porta da igreja, contratei a melhor carruagem e o melhor cavaleiro de que já ouviram falar! Infelizmente, não o melhor cavalo, que resolveu empacar cavalarmente na sua decisão cavalar de não mover uma só pata do lugar! Nenhuma das quatro! O que fez o meu amor, e a mais bela noiva da cidade, vir a pé mesmo, por três quadras até a porta da igreja. Foi um momento memorável! Mas nem tudo é perfeito...

Depois, tiramos uma foto com o cavalo.

Eu ainda tenho essa foto.

Por três anos trabalhei na costa leste dos Estados Unidos antes de receber um convite para me mudar para a Inglaterra, o que aceitei de bom grado, já que tenho origens ali, e sempre me senti bem lá. Seria interessante pra mim, como arquiteto, trabalhar em meio à colcha de retalhos que é o reino unido, arquiteturalmente falando. Temos castelos maravilhosos de todas as épocas e estilos, edifícios moderníssimos, excelentes professores. Sempre amei a arte, então, de muitas maneiras, ali era o meu lugar. Naqueles dias, na Inglaterra, para um arquiteto, era como ser um morador de Florença na época da renascença, quando DaVinci ainda andava pelas alamedas ao redor da cidade buscando inspiração. Como arquiteto especializei-me na construção de pontes. Hoje pode parecer meio estranho, mas numa sociedade que já tinha vivido duas guerras, pontes eram muito importantes! Não apenas porque muitas eram estrategicamente destruídas, e outras, estrategicamente construídas. Confuso, não? Veja bem, na guerra, as pontes são pontos importantes de acesso ao terreno. Se o seu exercito constrói uma ponte rapidamente por sobre um rio ou vale, você domina todo o território em questão. Em contrapartida, se você destrói uma, você não apenas isola o seu inimigo, como também o impede de acessar áreas de seu interesse.

Desnecessário dizer que não participei de nenhuma guerra. Mas eu sabia que o mundo iria precisar de pontes depois dela. Como construtor de pontes eu poderia trabalhar com as minhas duas paixões: o cálculo e a arte. Uma ponte hoje é um pavimento erguido sobre colunas, sem nenhum charme ou encanto, quando muito, simetricamente desenhada, usada apenas por sua função prática: a de ligar lados opostos antes inacessíveis. Menos é mais, é a filosofia do momento nas universidades. Mas em meu tempo era diferente. Uma ponte era uma obra de arte! Ela não seria digna de ser atravessada se não tivesse arcos e volutas, carrancas e floreios, pórticos e passadiços. Inútil, não? Talvez, às vezes o mundo precisa de beleza e carinho, mesmo em algo banal como uma ponte. Deveríamos imprimir mais encanto nas coisas que fazemos, o mundo seria menos rude. Mas não precisa se preocupar em discordar, isso é apenas uma opinião pessoal, viu... Talvez não sirva para você.

A minha incursão a terra da rainha não era um simples acaso, sim, eu tinha ficando bom em alguma coisa - e modéstia a parte, as minhas pontes eram consideradas esculturas. E isso é mais do que um elogio para um arquiteto. Talvez, e isso pode ser muito certo, você possa ter atravessado uma ou duas de minhas pontes, por ai. Depois da guerra você precisa embelezar as coisas, esconder as feias debaixo do tapete e fingir que elas nunca aconteceram. Vi nascerem jardins às margens de minhas pontes, ressurgirem castelos centenários derrubados por bombas, e estradas sinuosas que se elevavam pelas montanhas, e para se chegarem até eles, algumas pontes eram necessárias. É preciso, nesses casos, unir num único modelo, beleza e funcionalidade, o que são palavras quase sempre opostas, quando se trata de arquitetura. Em meu tempo, a engenharia tratava apenas dos cálculos, deixando à arquitetura a árdua tarefa dos projetos, mas eu tratava dos dois. Como eu já disse, uma ponte na Inglaterra não é uma simples estrutura construída para dar passagem sobre um rio, braço de mar ou depressão do terreno. É muito mais do que apenas isso. No país de Shakespeare e dos castelos, uma ponte deve ter graça, leveza, um toque gótico ou barroco – talvez neoclássico – e um notável aspecto social de organização do espaço. Ou seja, precisa ser uma obra de arte.

Tudo começou com essa primeira ponte, numa cidadezinha nos confins do horizonte, antigo domínio celta, quando ainda se entoavam hinos à natureza. Agora ela era chamada Greenhill, mas já teve outros nomes. Os dias lá eram estranhamente límpidos e brilhantes, num lugar onde quase sempre o céu está nublado e chuvoso. Erguia-se numa depressão, e esgueirava-se vale afora, às margens da rodovia que levava à Grimsby, e foi ali perto, na fronteira entre as duas, que comecei a pequena grande jornada que de agora em diante passarei a relatar. Espero que eu seja hábil o bastante, para tecer essa ponte entre estes dois mundos, tão diversos, tão distantes, e estranhamente, tão próximos. Como você também passará a entender. Deixe para julgar os fatos e os relatos no final da história. Tenho certeza de que muitas passagens nela lhe serão familiares. Critique, duvide, jamais deixe de questionar. O mundo não seria o mesmo sem essas três palavras. Por mais estranho que possas parecer, elas são a chave para as verdades contidas aqui. Pois só quando duvidares do que te cerca, passará a ver além das cercas. Uma fortaleza nos mantem seguros, mas também nos mantem limitados.

Quando da guerra, as bombas passaram longe de Greenhill , mas infortunadamente, um avião abatido caíra exatamente em cima da ponte que ligava as duas cidades. Ele ainda estava lá, quando cheguei. Enferrujado e envergado, como se tivesse sido mastigado por uma fera gigante e regurgitado na garganta logo abaixo do que sobrara da ponte. A antiga foi construída num estilo clássico francês, como se pudesse ser colocada a qualquer momento em pleno jardim de Versalhes. Foi mesmo uma pena não poder ter sido restaurada.

Clara viveu ali comigo por dois inesquecíveis anos, antes de tudo acontecer. Felicidade é uma palavra sem sentido pra mim, depois de tudo o que eu vivi. Devo dizer que éramos plenos. Sim, plenitude traduz tudo. A palavra felicidade lembra algo frágil, artificial, inventada para comerciais de televisão. A plenitude combina mais com o que compartilhávamos. Acho que a felicidade pode falhar, um belo dia ela acaba, ou diminui, como a luz do sol que a tempestade oculta. A plenitude não. Ela é mais como o próprio sol. Você sabe que ele está lá, atrás da tempestade, e que ele é maior e mais forte do que ela, apesar das aparências.

Então, não preciso dizer que Clara fora tudo o que eu esperei dela. Parece um conto de fadas, não? Você ainda não viu nada, devo dizer humoristicamente. Nunca, e jamais deixe alguém lhe dizer que a magia não existe! Sofri muito tempo na minha infância, quando descobri que Papai Noel não existia, tinha sido mera invenção dos homens para tornar a vida menos cinza e cruel. Se eu soubesse o que sei hoje, não teria sofrido essa perda. Ele existe sim, de muitas formas possíveis, porque todas as coisas são possíveis, como verá!

Bem ao lado da nossa casa havia um bosque que dava pras montanhas. Bosques evocam atmosferas idílicas, quase espirituais. Ali vivem seres imemoriais, cujo tempo não fazem sentido para eles.

Claro, eu não sabia disso naquele tempo. E para mim um bosque era apenas um lugar onde eu ia passar os finais de tarde, ver o pôr do sol e sentir o cheiro de grama verde que me inebriava. A nossa casa era a última de uma rua sem saída, que terminava na sombra das árvores que cercavam a rua. Eu sempre planejei desenhar eu mesmo a nossa casa, mas quando cheguei e a encontrei ali, eu sabia que ela era perfeita. Estilo baronial, com janelinhas no teto e chaminés nos quartos. Hoje eu sei que eu já a havia desenhado muito antes de eu nascer. Mas é uma coisa que você só compreenderá ao ler este livro. Ela pertenceu a mim, e foi sonhada por mim para nós, antes dos tempos dos tempos(...)

London
Enviado por London em 21/12/2016
Código do texto: T5859320
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