Da terra seca para o asfalto duro

Não dizem, pois, o que devo comer. Não sou homem de modos nem sorrisos amáveis. A vida me fez assim: duro e seco. Caminho sobre a terra com passos firmes e direção certa. Procuro não deixar dúvida. É preciso pisar firme para que a terra sinta o peso do corpo e saiba que nela, quem trabalha, com dureza e muito suor, também sabe acariciá-la.

Por essas bandas não existe um riacho, um picado de mata, que quem aqui vive, não conheça. A vida e a falta de tudo ensinam que a precisão, quando chega, não tem tempo de espera. É preciso se virar com o que se tem, e se não tem, é se virar também.

A morte sonda os pequenos assim que dão seus primeiros e tímidos berros. Eles nascem certos da dureza que será a vida. São teimosos, são tenazmente teimosos, e nascem.

O leite no peito da mãe é tão ralo que água com farinha ajuda a saciar o rebento faminto. A barriga saltada indica a falta de nutrição e a proliferação de vermes. Quem pode viver assim, Tonhão se pergunta nas horas de solidão. Nas horas em que pensa na Vida e na vida que deixou pra trás. Não lamenta a decisão, nunca lamenta as decisões que toma. É homem duro, forjado a duros golpes; ele sabe disso. Sabe que de onde vem, ou o cabra vinga, ou morre nos primeiros dias. Por isso não gosta que digam o que comer.

Desde muito pequeno, ainda aos seis ou sete anos, Tonhão, passava o dia a percorrer a região em busca de preá. Quando conseguia mais do que necessitava, repartia com Nica, a garota por quem ele, sem saber, já estava apaixonado. Quando não estava perambulando, cavando toca de preá ou gemendo de dor de fome, estava com Nica. Intimamente sonhava com ela se casar. Não pensava em filhos. Assim como ele, certamente os seus também não teriam comida, água e cama. Nem pensava nos estudos. Sabia que quem ali nasce não tem muita escolha: ou trabalha e não estuda e se estuda, não trabalha. Foi assim com seu pai, o pai de seu pai. Se todos tem a própria cruz, a de Tonhão, e Chico, e Marinalva, e Lindalva, e Nica e de muitos outros, era carregar a dor de estômago vazio e a vida sem descanso. Tonhão não queria ser mais um; queria traçar seu próprio caminho com seus próprios pés.

Tonhão cresceu assim: andando naquela secura de terra e sol sempre a pino. A água, quando tinha, era barrenta e esverdeada. À aridez do solo, juntava-se a poeira levantada por carros que passavam velozes. Era comum um tombar logo após a curva. Tonhão tirou muita gente de dentro das ferragens. Ajudou outras várias com os mais variados ferimentos: às vezes um com braço quebrado, outras, um sem braços e pernas. Mas o que mais causava chateação era ver criança. Em dias que acontecia de ter criança, ele não dormia por dias. Ficava sem comer, sem ânimo pra nada.

Conduzir feridos ao hospital mais próximo que, quase sempre, só tinha trabalho de emitir o atestado de óbito, deixava Tonhão tão melancólico que nem seu melhor amigo fazia jeito de tirá-lo daquele estado. Tonhão estava cansado; não queria continuar naquela vida. Não queria ser mais um naquelas bandas a condenar-se em ficar, não. Um lugar esquecido por Deus e quem mais quisesse.

"O mundo é de todos, então vou buscar a parte que me cabe", respondeu para Dente Torto, quando este perguntou por que essa vontade doida de querer ir embora?

O dia nem dera sua graça, quando dona Elisa foi à cama do filho. Não expressou susto, nem surpresa, quando se deparou com a cama ainda desfeita. Seu coração dizia algo que somente ela, como mãe e confidente do filho, sabia. O filho, contrariando o hábito, saiu sem arrumar a cama. Nunca isso tinha acontecido. A mãe sabia: seu filho saiu pro mundo, foi ter com o mundo a luta que não podia naquelas terras. Sem expressar qualquer sentimento de perda ou saudade, arrumou a cama do filho. Colocou no prego o crucifixo que trazia no pescoço. Fechou a porta e sentou-se, calada, à mesa.

Havia mais de anos que Tonhão não via seu pai, mãe, irmãos e uma cunhada. Saiu de casa para ganhar a vida. Não queria morrer naquele canto esquecido, nem desejava ali formar família. Pra quê, respondia quando lhe perguntavam sobre essa terrível maneira de perpetuar a miséria.

Tonhão era um homem rústico por natureza. Pele grossa e braços cabeludos denotavam nele um ser de poucas palavras e, por isso mesmo, todos o olhavam com desconfiança e certo medo.

Desde que saiu da casa dos pais, nunca tinha voltado. Antes fizera parada em outros estados; há mais de 20 anos, mora em São Paulo. Começou trabalhando como todo conterrâneo. Primeiro, foi guardador de carros, depois pedreiro, gari. Cansado dessa vida sem prumo, como ele dizia, fez ficha numa fábrica de roupas. Não tinha formação para a função, então lhe colocaram como faxineiro. Limpar a sujeira alheia tornou seu ofício. Todos sujam, respondia toda vez que Pedro reclamava do banheiro.

Acordou às 5 da manhã, sempre nos mesmo horário. Tomou seu ralo café; não saiu de imediato. Parou defronte ao espelho: “estou ficando velho”, balbuciou. “não vi minha mãe ser sepultada”, “meu pai, coitado, tá lá, sem eira nem beira”, “quanta desgraça nessa vida”, “quanta dor sufocada no peito...”, disse sem terminar, e saiu.

Dona Filó, a tia do café, chegava ao portão da fábrica antes de todos os empregados. Tinha uma clientela fiel e extremamente honesta. Nunca tinha deixado de receber o fiado que conferia aos empregados. Sentia orgulho de dizer que mesmo de férias, teve empregado que mandou o dinheiro por outro peão.

-- O de sempre?

-- Não, não, Dona Filó, estou atrasado. Fiquei pensando na vida...só um gole de café mesmo.

-- Saco vazio não para em pé, fio.

Rindo...

-- Sim, eu sei, saco vazio não para em pé. Bora, então, dá um pedaço desse bolo para eu comer depois. Marca ai na folha, depois eu pago, tchau.

-- Tchau, filho, que Deus te acompanhe.

-- ELE acompanha, dona Filó, a senhora também. E sumiu pra dentro da fábrica.