Do encontro...
O antigo relógio da sala de estar anunciava: eram cinco horas da manhã. Misturando-se ao som do relógio, ouviam-se as chaves girando dentro da maçaneta, na grande porta de madeira entalhada, que era adornada por um batente com as mais belas formas, estilo barroco.
Ao ser aberta, junto com a luminosidade da lua, entrava um homem. Trajava um elegante terno cinza escuro, do mais caro e delicado linho existente em Lisboa, sapatos pretos e brilhantes, lustrados impecavelmente e um chapéu na mesma cor do terno, talvez um pouco mais escuro.
A bengala de imbuia envernizada, antes apenas um apoio para as pernas, agora se fazia indispensável, tamanha embriaguez. Ela e as pernas se cruzavam, se encontravam, balançavam.
Subiu com o maior esforço e dificuldade a escadaria da imensa casa. Escadaria que dava em um corredor extenso e largo. Não sabia mais se era a bebida que o fazia ver tantas portas ou se realmente eram muitas.
O cheiro das flores, em um vaso grande e branco que se encontrava ao lado da porta de seu quarto, embrulhou-lhe o estômago; talvez não fosse o real motivo para o enjôo e sim, apenas um agravante.
No quarto encontrou sua mulher deitada, apenas com um lençol fino cobrindo-a. Tentou não fazer alarde e sentou na outra beirada da cama. Tirou o terno, a gravata, os sapatos e deitou-se vagarosamente, para não acordá-la.
O movimento na cama fez com que ela se mexesse também. O branco lençol deslizou por sua camisola transparente com sutileza, deixando sua coxa a mostra. Também podiam ver, não com tanta facilidade, seus seios com os mamilos rosados e enrijecidos. Os cabelos passavam pelo rosto e espalhavam-se pelo corpo e por toda a cama, exalando o mais doce e inebriante perfume.
Ele quis beijá-la, mas não pôde. Sua consciência, por menor que fosse, não permitiu que o fizesse. Virou-se e dormiu.
Noites como aquela, não foram poucas. Ela, já acostumada, não esperava mais a chegada do marido. Dormia sempre sem vê-lo chegar e se pudesse, também não o via sair.
O casamento também não era atípico: de interesse. Ela, de família nobre, já estava com 19 anos e começava se tornar uma preocupação. Precisava casar-se ou seria alvo da hipócrita e moralista sociedade portuguesa. A família não demorou a achar uma solução e fez com que se casasse com o filho de um antigo amigo.
O rapaz, recém formado na faculdade de Coimbra, era agora advogado e possuía um futuro promissor. Era magro, alto, usava um óculos de lentes redondas. Não era de um tipo interessante, pelo contrário, era sonso e apático.
A moça fez tudo que poderia para escapar do casamento arranjado, ameaçou até suicidar-se, mas foi em vão. Casou-se.
No primeiro ano casados, os problemas não eram tão evidentes, as aparências eram mantidas, como era do gosto da família, de ambos os lados. Também, não era difícil mantê-la, visto que quase não se falavam, eram dois estranhos dividindo a mesma casa, mesma cama e nada mais. Mas com o passar do tempo, a máscara da “harmoniosa família” caía.
A presença dele nos bordéis e bares lisbonenses não era novidade para ninguém, nem eram raras às vezes em que ela ia a eventos sociais desacompanhada do marido, ficando com suas primas solteiras.
Mesmo com os muitos olhares de desaprovação e até mesmo aversão das damas da alta, ela não perdeu seu jeito alegre e charmoso de ser, o que trazia mais fúria àquelas mulheres.
Sempre fora invejada, pois tinha uma beleza incomum e crua. Tinha os cabelos levemente ondulados que chegavam até a cintura, eram castanhos como o mogno. Diferente de todas as mulheres e moças da época, era a única que os deixava soltos e naquele comprimento. Nunca fora de seguir costumes, era de opinião e gênio forte.
Quando mais nova, sempre trazia flores entre os cabelos: preferia as margaridas brancas. Com o tempo, trocou-as por flores e enfeites de cristal, que luziam, misturando-se com o brilho forte de seus cabelos. Brilho também que irradiava de seus olhos.
Eram amendoados, bem definidos, com os cílios escuros e volumosos. A cor não era definida, ora eram verdes, ora mel, mas nunca perdiam sua beleza nem seu encanto. Transmitiam de forma mais límpida a essência de sua alma. Não havia quem não se perdesse, nem que por um segundo, diante daquelas preciosidades.
Com um desenvolvimento precoce, seu corpo ganhara belas formas. Possuía seios volumosos e coxas grossas e torneadas. Essas faziam os rapazes e os homens delirarem, enquanto as observavam sob o vestido leve e fino, que se ajustava ao corpo conforme a moça dançava e se mexia pelo salão. Ficavam a fantasiar, imaginando-as descobertas.
A pele branca como leite fazia contraste com seus vestidos, em sua maioria escuros e com sutil transparência.
Diferentemente de quando era menina e passava as tardes com as primas, ela agora vivia sozinha. Sua única companhia era Ana, empregada que se tornara amiga e confidente.
Ana era muito alegre, nunca se lamentava da vida nem de coisa alguma. Vivia divertindo a moça com suas histórias e casos cômicos, contava-os com vivacidade e animação impressionantes que a contagiavam. Talvez fosse sua única amiga, visto que, por causa do casamento fracassado, suas antes ditas amigas, foram aconselhadas pelas mães a se afastarem dela.
Apesar das conversas e das risadas com a empregada, a felicidade da moça não era a mesma. Seus olhos, por muitas vezes, não traziam o brilho de antes e ela percebia isso, sentia-se sozinha...
Não fossem os ventos que sopravam com força, aquela tarde seria comum e bela. No céu, não se viam nuvens, o sol brilhava, mas não o suficiente para esquentar os ventos gélidos. As portas do quarto que davam para a sacada do casarão, no segundo andar, bateram e assustaram-na. Estava na cama, lendo um romance, seu gênero preferido. Levantou apressada e foi fechá-las.
Enquanto o fazia, olhou pelo vidro da porta para a praça que ficava do outro lado da rua, bem em frente a sua casa e viu um homem sentado em um dos bancos. Parou e ficou observando. Sua respiração parecia estar mais lenta e seu olhar não conseguia desviar, estavam vidrados. Chegou mais perto do vidro e sua respiração quente embaçou-o, ela limpou rapidamente com suas mãos brancas e delicadas, mas mesmo assim, o vidro ficara manchado. Então, abriu novamente as portas e saiu para a sacada.
O mundo em volta dela parecia ter se calado, congelado. Não ouvia barulho algum, a não ser sua própria respiração. Estava hipnotizada pelos traços belos daquele homem. Era o ser mais lindo que tivera visto em toda vida.
Ele possuía traços bem fortes e masculinos no rosto, mas que não tiravam-lhe uma sutil delicadeza. Tinha equilíbrio, era perfeito! Os cabelos eram longos e negros como a noite, estavam amarrados e ela, mesmo estando tão longe, teve a impressão de sentir-lhe o perfume. Estava a ler e parecia muito compenetrado em sua leitura, não desviando a atenção do livro nem por um minuto.
Ficaram ali por quase uma hora. Ele lendo e ela observando-o, cada movimento, cada gesto.
Tudo parecia belíssimo para ela, desde o jeito como arrumava o cabelo que se agitava com o vento, até o modo como virava as páginas do livro. Ela queria descer correndo, encontrar com ele, olhar nos seus olhos e o abraçá-lo, mas nem o conhecia. Que sensação estranha! Estaria ficando louca?
Em meio a pensamentos confusos em sua mente, viu que o homem fechara o livro, e o colocara ao seu lado no banco. Levou as mãos aos olhos e os esfregou, como se estivessem cansados. Então o vento folheou o livro e uma página solta voou, parecia que dançava um balé no ar e foi subindo até chegar à sacada onde ela se encontrava. O olhar do homem que acompanhava o papel agora estava nela.
A camisola negra e transparente grudava em seu corpo devido ao vento forte, delineando e revelando-o de forma tentadora. Os cabelos eram jogados para trás, deixando seu claro e delicado rosto a mostra. Quando os olhares se encontraram, as maçãs do rosto dela ficaram rosadas e o mais intenso brilho explodiu de seus olhos.
Ela abaixou-se e pegou o papel do chão de sua sacada, quando levantou-se e olhou para o banco, o homem já não se encontrava ali. Ela debruçou o corpo na sacada procurando e avistou-o já na porta de sua casa. Foi então que ouviu a campainha.