A ida!
Ela deixou de lado tudo o que pensava. O lugar de onde viera não lhe dava possibilidades de rememorar... Sentou-se ali, precisava ordenar o próprio pensamento.
À beira do regato, tirou o chapéu e deixou livres os cabelos rebeldes.
A água branca, correndo mansinha, fazia barulho em seu coração.
Desejava ouvir de novo aquela canção das águas que, um dia, no passado, fora o seu fundo musical de vida.
Queria escutar com toda a sua sensibilidade, aquele rialhar cadenciado, a sonoridade da água caindo, indo, indo, sem fim, para um oceano distante...
Era neste exato lugar que Rebeca, aquela bela mulher e Adriano se encontravam, em tempo agora tão longínquo. Ali naquele jardim, fizeram amor um sem número de vezes. E se disseram palavras um ao outro, nunca ditas por ninguém, anteriormente.
O amor era tanto, parecia infinito. Aquelas pedras conheciam o som próprio da afetividade e pareciam alcovitar a felicidade impetuosa e deslumbrada de quem, um dia, conhecera o amor de verdade e a ele se entregara com volúpia, desinibição e juventude.
Rebeca se deixou ficar, inerte e inebriada, revivendo sensações distantes, mas tão presentes em seus sentidos, por momentos que lhe pareceram exageradamente fugazes.
Queria perdurar tal vivência, precisava sentir, de novo, aquele alvoroçar do seu sangue. O ventre se arqueava na busca inútil de outro corpo sobre o seu. Sentia o desejo manifesto no seio intumescido. Uma busca frenética do ausente amado na ausência de um agora inexistente físico.
Inesperadamente, sentiu que algo ou alguém se aproximava. Parecia ouvir passos. Assustou-se.
Iludida, não sabia que este não era mais o seu lugar. Apropriava-se do que não lhe pertencia.
Espiou por entre a vegetação, para o lugar onde percebia estar a origem do som seco sobre folhas.
Era um andar trôpego, de alguém com idade avançada, percebeu. Assim como enrugada era a fisionomia aquele homem que viera atrapalhar seus devaneios e que por ali chegava.
Suas mãos calosas, cheias de nós nas juntas dos dedos, eram feias e transpareciam ser maltratadas. Os cabelos, longos, eram engordurados e sem vida. Possuíam coloração esquisita, nem louros, castanhos, nem... que cor era aquela?
Rebeca sentiu repentina aversão por aquele ancião que ali chegara.
A impressão é de que seu odor seria desagradável, embora de onde ela estivesse fosse, praticamente, impossível sentir tal cheiro...
Aquele homem velho, andrajoso e trôpego havia interrompido as suas sensações de volúpia e do desejo que tomara o seu corpo, ali, naquele local de tantas memorizações pessoais.
Sentiu ojeriza absoluta por ele. Com que direito invadia seu arsenal de lembranças e o desejo físico que elas lhe causavam?
O que desejava aquele velho ser, àquela hora, ingressando em seu lugar sagrado, penetrando em sua privacidade e em seu pensamento, roubando-a até mesmo de si própria?
Ela não identificava como, mas em algum pedaço de sua memória aquele andrajoso homem lhe parecia familiar. Seus olhos, quem sabe? Seriam eles que lhe traziam lembranças? Algo em sua maneira de observar o que ali havia, à sua volta?
Isto ainda a deixou mais aborrecida. Seu íntimo, intuitivamente, se negava a averiguar de onde poderia ter emergido de sua memória este absurdo ser.
Procurou conter sua decepção. Nada poderia fazer.
Ergue-se, voluptuosa e passando ao lado do velho homem, como uma nuvem que se esvai, Rebeca também se foi. Para além dos vales, transpondo as montanhas, em busca do céu, o seu lugar. Foi-se, etérea, fluída e alada. Voava!
Como podem fazer os espíritos... Navegam nos mares, voam nos ares, flutuam sobre a terra...
Foi-se, linda, esvoaçantes os cabelos, com a aparência que tinha quando acabara o seu momento de viver neste mundo. Ela era muito jovem, vinte anos, na mais bela fase da própria juventude, que fora ceifada, perdida, interrompida. Para a Morte!
E por ele passou, pelo ancião, quase como um sopro divino, misto de vida pela dádiva da memória, misto de fim pelo arrebate da morte.
Adriano, envelhecido, cabelos brancos, alquebrado pelo efeito do avanço dos anos, ao chegar pelo atalho, buscara o lugar um dia preferido pela amada, que há tanto tempo lhe deixara, quando a juventude só era menor atributo do que o amor de um pelo outro.
Senta-se ali, onde o espírito de Rebeca estivera há segundos e diz palavras só compreensíveis para um tempo distante ou para um ouvinte sobrenatural...
Olha o além, nas curvas da água perdidas nas beiras do caminho de onde viera, buscando na memória a ternura que em algum momento de vida fora sua.
E o rio, em sua inesgotável capacidade, mistura seu som com o ruído leve do alçar sobrenatural de Rebeca.
As águas, coniventes ao amor, escutam as palavras de Adriano e parecem perceber, ainda, a presença de Rebeca, que ali deixara seu perfume.
O rio, nestes breves instantes, junta temporalidades de Vida e Morte, inquestionável realidade acima de tudo! E em sua inesgotável capacidade de continuidade, rima seu som com o alçar do voo de Rebeca, agora já distante e com a magnitude da sua juventude para sempre aprisionada pela morte.
Não percebera no ancião decrépito o antigo objeto de seu amor de outrora. Morto era o seu corpo que fora jovem. Vivo e velho era Adriano.