Coisas do Coração



 
Era o túmulo mais bonito do cemitério. Se é que se pode chamar bonito um túmulo.
O mais bem cuidado.

Todas as tardes, sempre às dezesseis horas, a moça chegava, trazendo no colo um ramalhete de flores do campo, um balde, sabonete e um pano para limpar a lápide. Pegava água da torneira mais próxima e punha-se a lavar o mármore em gestos delicados como se fosse o corpo dele. Sim, ali fora enterrado o seu amado. Morte repentina, queda de bicicleta, cabeça no meio-fio. Não eram noivos, sequer namoravam. As outras moças riam dela pelas costas, papelão, correr atrás de homem! Ademais ele nem era essa coca-cola toda. Mas ela o amava, fim, coisas do coração. Amor platônico que se estendeu após a morte do rapaz. O velório inteiro ela chorou segurando e beijando as mãos dele. Acarinhando os cabelos. Murmurando palavras de amor. Se tentavam retirá-la ao menos para tomar uma água, gritava, exigia que deixassem-na com sua dor.
No começo foi difícil. Mais de uma vez o pai foi, no meio da noite, buscá-la no cemitério. Pensou em interná-la mas a mãe sugeriu um psicólogo. Deu certo. Ela chorou todas as lágrimas do luto, relembrou diversas vezes o dia em que se conheceram, os poucos momentos que viveram juntos, ele gostava dela mas não para namorar. Só como amiga. Fazer o que. Coisas do coração. Mas nem o psicólogo conseguiu demovê-la da ideia de ir toda tarde ao cemitério para "ver o pôr-do-sol com ele." Aquela fase também haveria de passar, disse o profissional aos pais dela. Tivessem paciência. Era uma moça muito sensível, o mundo dela funcionava de um jeito muito particular.

Mas os meses se passaram, quase um ano inteiro e ela naquelas idas ao cemitério. Os rapazes que se aproximavam dela eram repelidos com firmeza, já tinha um amor e era fiel a ele. E prosseguia em seu rito diário. Até que adoeceu. Coisa pouca, uma virose. Mais de uma semana de cama, dores no corpo, idas ao hospital para tomar soro.
Quando melhorou, pegou o balde, o sabonete líquido com aroma de erva-doce, a flanela, passou na floricultura e comprou o ramalhete de flores do campo. Empurrou o portão do cemitério, o coração cheio de saudades do seu amor.
Encontrou o túmulo recém-lavado, a vela acesa, as flores do campo no jarro. Olhou em volta. Ninguém. Muito estranho. Mesmo assim lavou de novo o mármore, acariciou as letras do nome dele em relevo. Data de nascimento. Data de morte. Eternas saudades dos pais e amigos. E o sol se pôs.
No dia seguinte ela chegou mais cedo e surpreendeu um rapaz a limpar o túmulo. Brigou com ele. Quem era e por que estava fazendo aquilo? Não se irritasse, era o coveiro, só estava fazendo o seu trabalho. Pois que fosse cuidar dos outros túmulos. Ele cuidava, ela que nunca tinha reparado. Observou desconfiada. Cemitério bem-cuidado. Mas por que as flores do campo?
Ele baixou os olhos castanhos e tirou o boné. Achava lindo aquele amor fiel, constante, desinteressado. Se ele encontrasse alguém que o amasse daquela maneira, mesmo que no início parecesse não haver amor ele tentaria. Porque amar também se aprende.
Ela baixou a guarda. Tinha namorada? Não, as moças tinham medo dele. Ela riu. Percebeu que era a primeira vez em meses.
Tornaram-se amigos. Ele gostava de poesia. Ela lhe emprestava livros. Cuidavam juntos do túmulo do falecido. Ele a levava a conhecer os outros recantos do cemitério, as lápides antiquíssimas e comentava como era triste as pessoas se esquecerem dos seus mortos.

Um dia ela chegou com o ar grave. Lavou a lápide, acendeu a vela mas, em vez de flores do campo, colocou no jarro um buquê de rosas brancas. Chorou, relembrando o dia em que eles se conheceram, o dia em que ela se declarou, o conformar-se em ser só amiga. Tinham vivido juntos momentos inesquecíveis que ela guardaria para sempre no coração. Voltaria sempre que pudesse, sim, não o esqueceria.
Um pouco adiante, em distância respeitosa, seu novo amor a esperava. No bolso da camisa, o anel de compromisso. Tinha pedido demissão do emprego de coveiro, agora trabalhava de repositor em uma loja.
Ela se aproximou suave e ele pensou que nunca tinha visto uma mulher tão bela. Deram-se as mãos. Saíram. E o sol se pôs.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 25/11/2016
Reeditado em 11/06/2017
Código do texto: T5834737
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