Conto.
isabel Sprenger Ribas
As palmas, zoando aos seus ouvidos. E aquele velho homem, parecendo uma antiguíssima sucata, rebusca o português, numa linguagem parnasiana, confundindo a literalidade do que está sendo dito com o real e louco mundo das suas ideias aflitas, atrofiadas.
O discurso é para homenageá-lo, mas não está acontecendo.
O que sente é a terrível dor no abdome e o pavor de quase não conseguir controlar a urina.
Além disso, se pudesse, gritaria naquele momento, os palavrões. Mais indecentes que conhece.
O suposto erudito, perdido em meio às próprias palavras gesticulando melodraticamente, agora está dizendo seu nome trazendo-o de volta ao que ele não deseja. Pensa, irado: Maldito seja, imbecil.
E obriga-se a prestar a atenção, tentando imprimir à fisionomia características de sensibilidade. Ouve:
“Só alguém muito autêntico, inteiramente altruísta, somente um ser humano de rara fibra, de alta capacidade intelectual teria feito o que por vós foi feito (idiota, pensa, irritado...). As quarenta e três horas que passastes segregado, isolado, longe de nós, vossos amigos, exposto ao mais doloroso sofrimento, na verdade, enriqueceram-nos, meus amigos, aqui presentes, nesta sala
Sim, a nós (dito com grande ênfase), a nós!
A obra literária que nos coube, através da documentação por vós elaborada, em momento tão crítico de vossa existência, estabelecerá parâmetros de identificação do potencial de intelegibilidade (soam palmas, muitas palmas)...sim, senhoras, senh.............”
Perry está de novo sentido as palavras do orador perderem-se frente ao próprio pensamento. A dor aumenta a cada instante e a desagradável sensação de que esvaziará a bexiga a qualquer segundo, tornam-no irritadíssimo. Procura pensar em outra coisa. Muda a posição. Parece que assim, lançando o peso do corpo, sobre a perna sem gesso, sentirá menos opressão no ventre...
Entretanto, pensar em qualquer coisa, nesses últimos seis meses significa, voltar o pensamento, inapelavelmente, à origem da sua atual agonia.
Na realidade, naquele dia, sequer soubera o que aconteceu.
De repente, inesperadamente, estava lá, naquele lugar em que, segundos antes havia visto do alto. Uma dor profunda acusara a existência da própria cabeça. Não lembra muito bem, mas crê que temera muito a explosão do helicóptero, o que não aconteceu. Agora, já nem sabe mais se isto foi bom ou mau.
Na tentativa de livrar-se do manche, que pressionava suas costelas, percebera a ausência de domínio em relação aos membros inferiores.
DEUS, DEUS, soara a suplica. Até agora, arrepiam seu pelos...contrai os maxilares. Que sensação!
Lembra que pensara em tanta coisa: que o cérebro é quem comanda tudo; que Leila não estava ali; que era segunda feira; que era preciso ter calma...
Calma, calma. Era necessário sobretudo, racionalizar. Mas de nada adiantara tentar coordenar o fluxo das ideias para um campo de perfeito raciocínio.
Em certo momento dera um grito, semelhante ao dorido urro de um animal ferido, externando apenas os sentidos. Puro desespero. E continuou gritando, sem nexo, até o instante em que suas forças pareceram exaurir-se. Talvez, depois disto, tenha dormido um pouco...
Esfregando as pálpebras, agora acordado, apático, tentara pesquisar através do vidro estraçalhado, até onde a posição do seu corpo permitia.
Era uma planície, região que sempre lhe transmitira paz.
Quando escrevia a suas poesias, ou mesmo a prosa, apreciava compor figuras literárias envolvidas na inspiração que os terrenos planos lhe causavam. Parecia-lhe ver o infinito de modo indizível...
E agora ali estava ele, olhando, desesperado cheio de revolta, a vegetação rasteira e ressecada. Nada, nem ninguém, ali. Só o silêncio, quebrado pelo leve ruído de som metálico e intermitente, do lado de fora, como se fosse algo à mercê do vento.
Chegara a ouvir as batias do coração. O fluxo sanguíneo tornava ofegante o seu respirar. As gotas de suor gelado, escorrendo da testa febril, empapavam seu rosto, dando-lhe um aspecto grotesco de loucura...
Era preciso fazer algo. Sentia-se incomunicável com o mundo. Se, ao menos, pudesse desoprimir o corpo, pensara, então e ver o eu havia com suas pernas...se conseguisse...
Foi se tornando, aos poucos, conscientizado sobre a situação, que lhe parecia tenebrosa. Deveria ser mais ou menos umas nove horas, a julgar pelos arbustos molhados de orvalho que vira ali fora. Seu relógio sumira. Sabia que decolara do heliporto às sete horas. Portanto, deveriam iniciar sua busca, dentro de algum tempo, pois a previsão da sua chegada ao destino seria próxima às nove horas. Lá estariam as pessoas com as quais fizera contato, pelo rádio, minutos antes da decolagem,
Perry tentara, ainda, inúmeras vezes, libertar o tronco. O encosto do banco, ao projetar-se para a frente no instante do acidente, proporcionava-lhe uma posição extremamente incômoda, deve ter travado, impossibilitando seus movimentos,
Uma ideia preponderante assediava seu pensamento atormentado. O que faria, já que o comando cerebral, em relação às suas pernas, não era obedecido?
Notou que estava muito molhado. Urinara. A percepção da realidade fora inesperada e terrível. Um átomo de segundo e tivera a convicção de que sua espinha fora afetada com o impacto.
Não soubera até que ponto, então, era o grau da sua certeza. Porém, aos poucos, o que estava latente, emergiu. Estava privado! Suas pernas, sem movimento. Paralisadas.
PARALÍTICO!
O que predominou naqueles instantes de constatação até agora ele não sabe. Leila? Seu futuro? O dinamismo perdido? Passado? Presente? Ou tudo, num turbilhão vertiginoso, aflitivo, da vida, do futuro...uma loucura, loucura...
Com a cabeça pendente, pesadas das lágrimas amargas pela realidade, sobreviveu em um pensamento. Escreveria!
Sua necessidade vital, inata, despontara absoluta. O que sempre fizera parte dos seus dias anteriores estava ali, outra vez. A velha companheira vontade de escrever. Sim, faria isto, diria ao papel o que sentia. Manifestaria sua surpresa pelo inesperado, sua dor física, a revolta, a esperança, expressaria a mescla de sentimentos contraditórios que o estavam atingindo tão amplamente.
E tudo fora explodindo em sua mente. A busca do bloco e da caneta, no bolsão da porta que o espremia custara-lhe muito esforço, enfim superado.
O grande fluxo das palavras foi brotando, espontâneo e rápido.
Incrível! Quanta lembrança. As vezes em que escrevera aos amigos e não conseguira atingi-los, por suas ausências de sensibilidade nesses eventuais contemporâneos que se perderam pela incompatibilidade de subjetivos comuns. E as vezes em que tentara chegar ao Outro, por intermédio de sua filosofia pessoal, aberta, sem subterfúgios, que não encontrava repercussão...
E Leila, Leila? Também o julgava um tímido incorrigível, um sentimental em exagero, um poeta sem sucesso...dizia-o liberto apenas quando escrevia.
E agora aquilo tudo retornava, em uma lentidão tão em desacordo com a rapidez de sua caneta.
A fome, a dor, o medo, a insegurança, tudo aquilo tomaria forma impressa em vocábulos, numa ânsia de deixar uma última parcela de si... aquela que sobrara!
A manhã seguinte o encontrara semiconsciente, exaurido e insuportavelmente dolorido. Ouvira, por momentos, sons sobre sua cabeça. Buscavam-no?
Mas naquele instante, tudo parecera que nada tinha importância. Nada!
As palmas trazem-no de volta o seu presente irreversível. Todos o cumprimentam, comprimindo-se ao seu redor. A sensação de angustia perdura. O leve aperto das mãos de Leila, em seus ombros, causa-lhe intenso mal-estar.
Ela se abaixa para beijá-lo e seu olhar, vagamente apiedado faz com que desvie o seu para o aglomerado humano que o comprime. Pedem-lhe autógrafos. Sua assinatura parece falsa, naqueles panfletos sofisticados que estão sendo distribuídos por pessoas que nunca viu.
Ali, naquele inexpressivo amontoado de papel está ele...
É elogiado, bajulado.
Mas só agora, tão tarde.
Tarde demais...sim, quando a realidade que o transtorna tanto, a da Cadeira de Rodas, passa a ser a invariável constante e eterna do seu futuro.
isabel Sprenger Ribas
As palmas, zoando aos seus ouvidos. E aquele velho homem, parecendo uma antiguíssima sucata, rebusca o português, numa linguagem parnasiana, confundindo a literalidade do que está sendo dito com o real e louco mundo das suas ideias aflitas, atrofiadas.
O discurso é para homenageá-lo, mas não está acontecendo.
O que sente é a terrível dor no abdome e o pavor de quase não conseguir controlar a urina.
Além disso, se pudesse, gritaria naquele momento, os palavrões. Mais indecentes que conhece.
O suposto erudito, perdido em meio às próprias palavras gesticulando melodraticamente, agora está dizendo seu nome trazendo-o de volta ao que ele não deseja. Pensa, irado: Maldito seja, imbecil.
E obriga-se a prestar a atenção, tentando imprimir à fisionomia características de sensibilidade. Ouve:
“Só alguém muito autêntico, inteiramente altruísta, somente um ser humano de rara fibra, de alta capacidade intelectual teria feito o que por vós foi feito (idiota, pensa, irritado...). As quarenta e três horas que passastes segregado, isolado, longe de nós, vossos amigos, exposto ao mais doloroso sofrimento, na verdade, enriqueceram-nos, meus amigos, aqui presentes, nesta sala
Sim, a nós (dito com grande ênfase), a nós!
A obra literária que nos coube, através da documentação por vós elaborada, em momento tão crítico de vossa existência, estabelecerá parâmetros de identificação do potencial de intelegibilidade (soam palmas, muitas palmas)...sim, senhoras, senh.............”
Perry está de novo sentido as palavras do orador perderem-se frente ao próprio pensamento. A dor aumenta a cada instante e a desagradável sensação de que esvaziará a bexiga a qualquer segundo, tornam-no irritadíssimo. Procura pensar em outra coisa. Muda a posição. Parece que assim, lançando o peso do corpo, sobre a perna sem gesso, sentirá menos opressão no ventre...
Entretanto, pensar em qualquer coisa, nesses últimos seis meses significa, voltar o pensamento, inapelavelmente, à origem da sua atual agonia.
Na realidade, naquele dia, sequer soubera o que aconteceu.
De repente, inesperadamente, estava lá, naquele lugar em que, segundos antes havia visto do alto. Uma dor profunda acusara a existência da própria cabeça. Não lembra muito bem, mas crê que temera muito a explosão do helicóptero, o que não aconteceu. Agora, já nem sabe mais se isto foi bom ou mau.
Na tentativa de livrar-se do manche, que pressionava suas costelas, percebera a ausência de domínio em relação aos membros inferiores.
DEUS, DEUS, soara a suplica. Até agora, arrepiam seu pelos...contrai os maxilares. Que sensação!
Lembra que pensara em tanta coisa: que o cérebro é quem comanda tudo; que Leila não estava ali; que era segunda feira; que era preciso ter calma...
Calma, calma. Era necessário sobretudo, racionalizar. Mas de nada adiantara tentar coordenar o fluxo das ideias para um campo de perfeito raciocínio.
Em certo momento dera um grito, semelhante ao dorido urro de um animal ferido, externando apenas os sentidos. Puro desespero. E continuou gritando, sem nexo, até o instante em que suas forças pareceram exaurir-se. Talvez, depois disto, tenha dormido um pouco...
Esfregando as pálpebras, agora acordado, apático, tentara pesquisar através do vidro estraçalhado, até onde a posição do seu corpo permitia.
Era uma planície, região que sempre lhe transmitira paz.
Quando escrevia a suas poesias, ou mesmo a prosa, apreciava compor figuras literárias envolvidas na inspiração que os terrenos planos lhe causavam. Parecia-lhe ver o infinito de modo indizível...
E agora ali estava ele, olhando, desesperado cheio de revolta, a vegetação rasteira e ressecada. Nada, nem ninguém, ali. Só o silêncio, quebrado pelo leve ruído de som metálico e intermitente, do lado de fora, como se fosse algo à mercê do vento.
Chegara a ouvir as batias do coração. O fluxo sanguíneo tornava ofegante o seu respirar. As gotas de suor gelado, escorrendo da testa febril, empapavam seu rosto, dando-lhe um aspecto grotesco de loucura...
Era preciso fazer algo. Sentia-se incomunicável com o mundo. Se, ao menos, pudesse desoprimir o corpo, pensara, então e ver o eu havia com suas pernas...se conseguisse...
Foi se tornando, aos poucos, conscientizado sobre a situação, que lhe parecia tenebrosa. Deveria ser mais ou menos umas nove horas, a julgar pelos arbustos molhados de orvalho que vira ali fora. Seu relógio sumira. Sabia que decolara do heliporto às sete horas. Portanto, deveriam iniciar sua busca, dentro de algum tempo, pois a previsão da sua chegada ao destino seria próxima às nove horas. Lá estariam as pessoas com as quais fizera contato, pelo rádio, minutos antes da decolagem,
Perry tentara, ainda, inúmeras vezes, libertar o tronco. O encosto do banco, ao projetar-se para a frente no instante do acidente, proporcionava-lhe uma posição extremamente incômoda, deve ter travado, impossibilitando seus movimentos,
Uma ideia preponderante assediava seu pensamento atormentado. O que faria, já que o comando cerebral, em relação às suas pernas, não era obedecido?
Notou que estava muito molhado. Urinara. A percepção da realidade fora inesperada e terrível. Um átomo de segundo e tivera a convicção de que sua espinha fora afetada com o impacto.
Não soubera até que ponto, então, era o grau da sua certeza. Porém, aos poucos, o que estava latente, emergiu. Estava privado! Suas pernas, sem movimento. Paralisadas.
PARALÍTICO!
O que predominou naqueles instantes de constatação até agora ele não sabe. Leila? Seu futuro? O dinamismo perdido? Passado? Presente? Ou tudo, num turbilhão vertiginoso, aflitivo, da vida, do futuro...uma loucura, loucura...
Com a cabeça pendente, pesadas das lágrimas amargas pela realidade, sobreviveu em um pensamento. Escreveria!
Sua necessidade vital, inata, despontara absoluta. O que sempre fizera parte dos seus dias anteriores estava ali, outra vez. A velha companheira vontade de escrever. Sim, faria isto, diria ao papel o que sentia. Manifestaria sua surpresa pelo inesperado, sua dor física, a revolta, a esperança, expressaria a mescla de sentimentos contraditórios que o estavam atingindo tão amplamente.
E tudo fora explodindo em sua mente. A busca do bloco e da caneta, no bolsão da porta que o espremia custara-lhe muito esforço, enfim superado.
O grande fluxo das palavras foi brotando, espontâneo e rápido.
Incrível! Quanta lembrança. As vezes em que escrevera aos amigos e não conseguira atingi-los, por suas ausências de sensibilidade nesses eventuais contemporâneos que se perderam pela incompatibilidade de subjetivos comuns. E as vezes em que tentara chegar ao Outro, por intermédio de sua filosofia pessoal, aberta, sem subterfúgios, que não encontrava repercussão...
E Leila, Leila? Também o julgava um tímido incorrigível, um sentimental em exagero, um poeta sem sucesso...dizia-o liberto apenas quando escrevia.
E agora aquilo tudo retornava, em uma lentidão tão em desacordo com a rapidez de sua caneta.
A fome, a dor, o medo, a insegurança, tudo aquilo tomaria forma impressa em vocábulos, numa ânsia de deixar uma última parcela de si... aquela que sobrara!
A manhã seguinte o encontrara semiconsciente, exaurido e insuportavelmente dolorido. Ouvira, por momentos, sons sobre sua cabeça. Buscavam-no?
Mas naquele instante, tudo parecera que nada tinha importância. Nada!
As palmas trazem-no de volta o seu presente irreversível. Todos o cumprimentam, comprimindo-se ao seu redor. A sensação de angustia perdura. O leve aperto das mãos de Leila, em seus ombros, causa-lhe intenso mal-estar.
Ela se abaixa para beijá-lo e seu olhar, vagamente apiedado faz com que desvie o seu para o aglomerado humano que o comprime. Pedem-lhe autógrafos. Sua assinatura parece falsa, naqueles panfletos sofisticados que estão sendo distribuídos por pessoas que nunca viu.
Ali, naquele inexpressivo amontoado de papel está ele...
É elogiado, bajulado.
Mas só agora, tão tarde.
Tarde demais...sim, quando a realidade que o transtorna tanto, a da Cadeira de Rodas, passa a ser a invariável constante e eterna do seu futuro.