TIO BETINHO

- Alôu! Alôu! Fabrício, é você? – disse uma voz estranha no telefone.

- Quem tá falando?

- Ô meu filho, sou eu, seu Tio Betinho!

Fabrício se jogou no sofá sem acreditar no que ouvira ao mesmo tempo em que olhou para o relógio. Eram duas horas da manhã.

- Tio Betinho? Marido da Tia Hermínia? – perguntou Fabrício sem acreditar.

- Isso, isso. Sou eu mesmo! Que bom que você ainda lembra de mim, eu estava com...

- O mesmo Tio Betinho que abandonou a Tia Hermínia há 35 anos? – interrompeu Fabrício – Abandonou não, fugiu! Fugiu! Quando Tia Hermínia chegou em casa o senhor tinha ido embora com todas as suas coisas! Só deixou um bilhete dizendo alguma coisa como “descobri tudo, adeus sua bruxa”.

- Meu filho, deixa eu explicar! Tenho muita coisa para te dizer e tenho pouco tempo. Eles estão atrás de mim e é uma questão de tempo até me encontrarem! Eu estou aqui perto da sua casa. Deixa eu ir aí te contar toda a verdade. Por favor! Antes que seja tarde demais. Você precisa saber. A nossa família precisa saber. O mundo precisa saber!!!

Fabrício poderia simplesmente desligar o telefone na cara daquele traste que fizera sua tia sofrer tanto, mas agora, depois de trinta e cinco anos, ele poderia finalmente descobrir o motivo pelo qual um marido tão apaixonado, tão dedicado, tinha abandonado a mulher daquela forma.

- Tá bom, tio, pode vir. O endereço é...

- Eu sei onde você mora. Pra falar a verdade eu estou no telefone público aqui na esquina.

Cinco minutos depois o interfone tocou e Fabrício autorizou a entrada do tio.

Tio Betinho e Tia Hermínia eram apaixonados um pelo outro. Todos na pequena cidade sempre comentavam como Betinho era um marido exemplar. Quando um casal se separava naquela cidadezinha minúscula sempre lembravam que isso jamais aconteceria com o Betinho e a Hermínia. Tio Betinho era sempre tomado como referência quando as meninas da cidade começavam a pensar em meninos: “Toma cuidado menina, esses homens são todos iguais. Você precisa encontrar um rapaz como o Betinho. Aquele sim é que é bom marido. Apaixonado, atencioso, dedicado, enche a mulher de carinhos e presentes”.

Mas para decepção geral (em especial das mulheres, que ainda acreditavam na existência de homens verdadeiramente apaixonados e fiéis como Tio Betinho) um dia ele simplesmente foi embora. Sumiu. E ninguém nunca mais ouviu falar dele. Até aquela noite. Fabrício tinha dez anos na época, mas lembra da família reunida, Tia Hermínia chorando, a mãe de Fabrício (irmã de Hermínia) a consolando e a cidade inteira falando sobre o assunto nos meses que se passaram. Agora ele saberia a verdade. Toda a verdade.

A campainha tocou. Fabrício abriu a porta e reconheceu o tio apesar do peso dos 35 anos que haviam se passado.

- Oi tio! Pode entrar.

Antes que terminasse a frase Betinho já estava sentado no sofá com uma mala de couro marrom desgastada no colo. O tio entrou rápido, um pouco nervoso, como se tivesse muita coisa para contar e pouco tempo para dizer tudo. Estava com cara de assustado. Na verdade parecia estar com medo, mas Fabrício achou que era apenas o nervosismo natural de alguém que reaparece depois de trinta e cinco anos sem dar notícias.

- Meu filho, senta aqui. Temos pouco tempo. Eu preciso te...

- Tio, peraí! O senhor abandou a Tia Hermínia há trinta e cinco anos, quer dizer, fugiu, sumiu, sei lá qual a palavra certa para usar. Só deixou um bilhete chamando a pobre Tia Hermínia de bruxa. O senhor não sabe o quanto a coitada sofreu! Se fosse hoje em dia em uma cidade grande, mas naquela época e numa cidade pequena! Por meses, quer dizer, eu acho que por anos esse foi o assunto da cidade! Por onde ela passava as pessoas cochichavam, algumas riam, outras a olhavam com pena.

- Meu filho, me escuta, pelo amor de Deus! Eu tenho pouco tempo para te contar tudo. Sua tia era uma bruxa. Uma bruxa de verdade! Eu sei que é difícil de acreditar. Eu mesmo levei anos para descobrir e quando descobri levei muito tempo para acreditar!

- Tio, o senhor está bem? – Fabrício olhou preocupado para o seu rosto tentando encontrar algum traço de insanidade. Talvez - pensou - Fabrício - esse nervosismo, essa agitação sejam sintomas de alguma doença mental. Quem sabe síndrome de abstinência. Tio Betinho bem que poderia ter se envolvido com drogas nesses trinta e cinco anos.

- Filho, eu sei o que você está pensando, mas eu não estou maluco. Eu nunca me apaixonei pela sua Tia Hermínia, eu nunca amei aquela mulher. Quer dizer, era apaixonado sim, amei sim, mas não de verdade. Eu descobri que durante anos ela colocava alguma coisa na minha comida, na minha bebida, em qualquer coisa que eu fosse botar na boca.

Fabrício começou a pensar no que deveria fazer, deveria se levantar e mandar o tio embora? Mas Tio Betinho não parava de falar:

- Toda vez que eu começava a perceber que não era realmente apaixonado por ela lá vinha sua tia com um suco, uma cerveja, um pedaço de bolo. No início eu não percebia, mas alguns minutos depois de comer ou beber o que ela havia trazido eu me sentia loucamente apaixonado por aquela mulher. A paixão, o amor, a idolatria, todas essas coisas ressurgiam, entende?

- Tio, o senhor tem certeza de que está bem?

- Estou, estou Fabrício. Não estou maluco. Eu sei que é difícil de acreditar, mas eu preciso te contar tudo antes que eles me encontrem.

- Eles quem tio?

- Espera, espera, eu vou chegar lá. Mas antes tenho que terminar a história de sua tia. Com o tempo eu comecei a perceber que sempre que começava a demonstrar menos carinho, menos amor, menos interesse por sua tia lá vinha a bruxa com um copo ou um prato na mão e...tchum! Lá estava eu apaixonado novamente.

- Tio, pelo amor de Deus, a tia Hermínia ia à missa todos os dias e...

- FINGIMENTO! TUDO FINGIMENTO! – berrou o tio com os olhos cheios de raiva. Fabrício se encolheu na poltrona em que estava sentado. Deveria chamar a polícia? Não, não. Isso seria demais. Ia levantar e dizer ao tio que já era tarde demais e que tinha que dormir. Mas Tio Betinho não se calava:

- Ela fazia isso para ninguém desconfiar dela – continuou o tio – mas onde eu estava mesmo? Ah, sim. Quando eu comecei a perceber isso resolvi continuar demonstrando a mesma paixão, o mesmo amor quando os efeitos do sei lá o que ela me dava passavam. E com o passar dos dias eu tinha que me esforçar mais e mais para parecer apaixonado, pois o amor diminuía rapidamente. E sabe o que eu comecei a fazer? Sabe? Todos os dias, depois de sair do trabalho, eu passava na padaria e comprava um sanduíche de mortadela, um pedaço de bolo e uma cerveja.

- Mas porque o senhor fazia isso, tio?

- Arrááá! Para que ela não tivesse a oportunidade de me enfeitiçar! Eu chegava em casa e já sentava direto na mesa da cozinha, comia o sanduíche, bebia a cerveja, comia o bolo e se ela tentasse me empurrar alguma coisa para comer ou beber eu dizia que estava entupido. E na hora da janta eu dizia que ainda estava sem fome. Falava para ela deixar a comida no prato que eu esquentava no forno. Então eu esperava ela dormir, ia na cozinha, pegava o prato e dava a comida para o cachorro. Acho que o feitiço só funciona em gente. Se bem que o cachorro começou a ficar mais para o lado dela do que pro meu. Agora é que eu estou lembrando disso...ah, foda-se o cachorro.

- Tio, você quer que eu ligue para alguém? - perguntou Fabrício na esperança de se livrar do tio.

- Não, ninguém pode saber que eu estou aqui, principalmente sua Tia Hermínia.

- Mas tio, a Tia Hermínia morreu há uns dez anos...

- Morreu? Graças a Deus! - exclamou aliviado - Mas logo um pensamento surgiu em sua cabeça: o que será que acontece com as bruxas quando morrem? Agora sua expressão era de mais preocupação.

- Tio! – exclamou Fabrício indignado. Mas o tio continuou falando:

- Bom, quando eu já não suportava mais olhar para a sua tia eu...eu...eu simplesmente não sabia o que fazer! Se eu continuasse vivendo com ela mais cedo ou mais tarde ela ia me enfeitiçar de novo. Se eu saísse de casa e continuasse morando na cidade eu nem sei o que ela poderia fazer comigo. Então eu decidi que iria embora. Planejei tudo e um dia quando ela foi na igreja eu peguei todas as minhas coisas e fui embora.

- Tio, sabe...é meio difícil de acreditar nisso tudo...quer dizer...a tia Hermínia sempre foi tão normal. Fabrício fez menção de se levantar e pedir para o tio ir embora, afinal de contas tinha que acordar cedo para trabalhar, mas o tio chegou para frente e ele se encolheu na poltrona novamente.

- Ah, meu jovem, meu jovem...eu também nunca desconfiei de nada até o dia em que fui embora. Depois as coisas foram clareando na minha cabeça. Muitas coisas estranhas aconteciam na cidade, mas ela sempre dava um jeito de fazer parecer que essas coisas estranhas não eram estranhas, entende?

- Pra falar a verdade não – respondeu Fabrício enquanto pensava o que deveria fazer. Seu tio definitivamente estava louco. Mas ele não parava de falar:

- Você lembra daqueles dois meninos, não me lembro o nome deles, mas eles eram os filhos do padeiro. Eles estudavam na mesma escola que você e cismaram de te atormentar. Te batiam, te jogavam no chão, caçoavam de você, inventavam apelidos ridículos e todos riam de você? Você lembra disso? Você tinha uns 9 anos e eles eram mais velhos, acho que um tinha 11 e outro 12 anos.

- É, eu lembro disso. Já tinha esquecido tudo isso. Obrigado por me lembrar...

- Então você lembra que eles pararam de implicar com você, não lembra? Mas o que você não sabe é que sua tia os enfeitiçou. De um dia para o outro eles ficaram doentes. Vomitavam e cagavam, cagavam e vomitavam. Quando não vomitam nem cagavam tinham febre. Os médicos não sabiam o que eles tinham. Ninguém sabia. Então, quando parecia que eles haviam melhorado a mãe dizia que ele deviam voltar a estudar, mas assim que chegavam na porta da escola eles se cagavam e voltavam para casa deixando um rastro de merda pelo caminho. Eles ficaram assim durante seis meses e perderam o ano. Então um belo dia a sua tia foi até a casa do padeiro e disse que conhecia uma erva, que podia fazer um chá, inventou um monte mentiras. Bom, ela fez o tal chá e da noite para o dia os cagões ficaram curados. Mas desse dia em diante eles nunca mais foram os mesmos. Pareciam assustados, principalmente quando viam você. Talvez sua tia tenha falado alguma coisa para eles, não sei, mas o certo é que eles nem chegavam mais perto de você.

- Tio, eles devem ter ficado muito debilitados depois de praticamente seis meses doentes. Por isso é que eles pararam de me atormentar, e além do mais...

- Então tem outra história – interrompeu o tio – Os Gomes! Lembra dos Gomes? Não, claro que não, você ainda era muito novo quando tudo aconteceu.

Tio Betinho olhou para o relógio e ficou preocupado. Já eram quase três horas da manhã.

- Eu tenho que ser rápido, logo vai amanhecer, e eles estão atrás de mim.

- Tio, quem está atrás do senhor? – perguntou Fabrício intrigado e ao mesmo tempo impaciente. Não sabia como se livrar do pobre Tio Betinho. O coitado enlouquecera.

- Cada coisa a seu tempo, meu filho. Então, tinha essa família, os Gomes. O marido era adevogado e ser adevogado naquela época era chique.

- Advogado, tio, advogado – corrigiu Fabrício. Mas o tio não prestou atenção.

- Se você fosse um adevogado naquela época você era uma pessoa importante, principalmente em uma cidadezinha como aquela. Todos os chamavam de Dotôr Gomes e a mulher dele achava que também era adevogada, só faltava querer ser chamada de Dotôra.

Fabrício nem pensou em corrigir o tio: "Dotôr", "Dotôra", ah, deixa assim mesmo.

- Andava de nariz empinado aquela metida. Se achava melhor do que todos na cidade. E ainda por cima era amiga da mulher do prefeito. Eram sempre convidados para jantares na casa do prefeito, junto com o juiz da cidade, os vereadores, só gente importante. Mas pra não ser injusto ela nunca tratou ninguém mal, até tentava ser simpática, mas sempre falava com as pessoas com uma expressão de quem estava pensando "gentinha", "coitados", coisas desse tipo.

- É, eu conheço a história deles. Foi outra que ficou famosa na cidade. Igual a sua, Tio Betinho...

Tio Betinho fingiu que não ouviu e continuou:

Eles nunca tinham se metido com ninguém da nossa família. Até que um dia eles tiveram uma briga feia com seus pais por causa do seu irmão. O filho mais velho deles, que era outro que achava que tinha o rei na barriga, arrumou uma confusão com o seu irmão e o Duda quebrou a cara do nojentinho. Aí os pais foram lá na sua casa e humilharam sua mãe, coitada, disseram que iam processar, que iam mandar seu irmão pra uma daquelas prisões de menores, que seu irmão era um delinquente, enfim, arrasaram a sua mãe.

Fabrício pensava o que poderia fazer para se livrar do tio, mas toda vez que ia fazer alguma coisa o tio se chegava mais pra perto da poltrona e Fabrício se afundava ainda mais.

- No final acabou que não fizeram nada. Depois eu fiquei sabendo que o juiz da cidade, que era amigo deles, disse para deixar pra lá, que aquilo foi uma briga de crianças, que se o Dudinha fosse mandado para uma prisão de menores isso ia acabar com a vida deles. Mas sabe qual é a verdade? É que o juiz ficou sabendo que quem começou tudo foi o bestinha, por isso desencorajou os Gomes a processarem seu irmão.

- Tio, acho que já está ficando tarde, já são quase quatro horas da manhã.

Fabrício percebeu que o tio ficou um pouco nervoso quando ele disse a hora e começou a falar mais rápido:

- Bom, a cagada já estava feita: tinham humilhado sua mãe na frente de um monte de gente e ficaram espalhando pela cidade que seu irmão era um delinquente e que só não estava preso porque eles tinham bom coração. E foi aí que tudo começou. Pode ter certeza que foi tudo obra da sua tia.

- Tio, eu realmente preciso acordar...

- Acontece que os Gomes tinham um outro filho de 1 ano e precisavam de uma babá. A dotôra entrevistou algumas candidatas mas não aprovou nenhuma. Todo mundo tinha certeza de que ela as considerou gentinha sem bons modos, sem instrução, que não tinham capacidade de cuidar do mais novo filho da realeza. Aí você me pergunta: o que a minha tia tem a ver com isso? Eu conto: do nada apareceu uma candidata, uma menininha de 18 anos, baixinha, morena, de olhos verdes e um corpo..., um corpo...bem, um corpo que deixou todos os homens da cidade malucos. E sabe o que aconteceu? A madame gostou dela! Agora ela era a nova babá do mais novo Gomes. Acontece que as amigas dela ficaram pasmas, afinal de contas, ter uma menina bonita daquele jeito dentro de casa seria uma tentação para qualquer homem. Mas a dotôra achava que todos estavam brincando com ela, afinal de contas a nova babá devia ter uns 60 anos, era feia e gorda. A verdade é que ela estava enfeitiçada por sua tia! Ela via uma mulher velha, feita e gorda quando olhava para aquela ninfeta que enlouqueceu todos os homens da cidade.

Tio Betinho olhou para o relógio e viu que já passava de quatro horas da manhã, então começou a falar mais rápido:

- Filho, tenho que ir antes do amanhecer. Eles vão logo me encontrar. Então vou resumir a história. Não deu outra: o Gomes se engraçou com a babá e abandonou a mulher e os filhos. Sumiram. Ninguém ficou sabendo para onde eles foram. E antes de sumirem ele vendeu tudo o que tinha, inclusive a casa onde morava com a família. A dotôra nunca conseguiu entender como o marido a trocara por uma velha gorda e feia. Teve que sair da casa que tinha sido vendida, humilhada saiu da cidade e arrumou um emprego na padaria da cidade vizinha. Meses depois o dotôr adevogado voltou sem a moreninha: ela fugiu com todo o dinheiro dele. Estava na miséria. Feitiçaria, eu lhe digo, obra da bruxa da sua Tia Hermínia.

- Tio, eu...

- Eu tenho que ir embora, meu filho, tenho que sair antes do amanhecer e antes que eles me encontrem.

Fabrício respirou aliviado.

- Tio, são mais de quatro horas da manhã, quer que eu chame um táxi para o senhor?

- Não precisa não meu filho, eu vou voando.

Sem acreditar no acabar de ouvir Fabrício só conseguiu perguntar:

- Como assim voando?

- Ah, sim, esqueci de dizer. Quando saí de casa passei por vários países e em um deles fui mordido por um vampiro. É isso aí, meu filho, eu agora sou um vampiro - e saiu apressado pela porta.

Fabrício ainda teve tempo de perguntar:

- Tio, você não disse quem é que está atrás do senhor!

- Os lobisomens! - Gritou o tio enquanto a porta do elevador fechava.

Fabrício ficou por alguns segundos parado na porta pensando o que poderia fazer para ajudar o tio. Estava obviamente maluco e, acreditando que era um vampiro perseguido por lobisomens, poderia fazer alguma bobagem. Foi até a janela para ver o tio ir embora, mas a rua estava deserta. Viu apenas a mala de couro marrom do tio caída na calçada e tomou um susto quando um morcego passou voando pela janela. E logo depois ouviu alguns uivos agudos ao longe.

Era noite de lua cheia.

ALEXANDRE JUSTO
Enviado por ALEXANDRE JUSTO em 20/11/2016
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