Comunicação dos Dois Pés Rachados.

O pé rachado, de calcanhar grosseiro, parecia forte para carregar o corpo da mulher grávida. No entanto, era frágil e ardia ao contato com a terra seca. De séculos, terra tão seca. Terra Mãe, também rachada.
Era sua terra, entretanto. Terra do seu chão, seu plantio de algodão bichado, do seu milho que já nascia com caruncho.
E seria também a terra do seu filho, pesando muito na barriga pontiaguda.
Nhá  Cida afirmara, com a propriedade daqueles que jamais aceitam  a contrapartida da opinião: “Desta veiz é uma minina”, dissera, como única parteira da vasta região do agreste. Falara convicta.
O olhar da mulher de pé rachado estava fixo. Expressivo e esquisito, com o globo ocular azul por ser tão branco. Também a boca. Pálida, parecia amarrada por um ricto indecifrável.
Com as mãos espalmadas, pressionou os seios, que nunca deixaram de ser murchos. Nem quando ali foram sugados pela sequiosa boca masculina do seu homem amado, imperante na sexualidade daqueles momentos. E nem quando foram as primeiras ofertas de alimento as quatro bocas infantis da sua descendência, os seus  meninos.
De nada adiantaram estas cinco carícias de duas origens diferentes, multiplicada por um sem número de suas repetições cotidianas.
Eram peitos moles. Assim estavam neste instante.
A cabocla, com seu olhar insondável e parado, pois só mexia a cabeça, espiava os homens que por ali passavam, quase desconhecidos. Forte, rijos, alguns mais claros, diferenciados dos homens daquele rincão.
Havia, entre eles, um a quem chamavam de doutor e que, inúmeras vezes, bebera água da sua melhor gamela.
Ele é que dava as ordens, este doutor. Com calma e repetindo várias vezes as próprias palavras. E quando ria, parece que iluminava aquele sertão, com seus dentes alvos,  semelhantes ao do vigário lá da vila.
A mulher do pé rachado nunca erguia a voz, embora ouvisse o tempo todo os gritos do companheiro. Não de ira, talvez. Mas ele só sabia falar assim...
Deste modo ela estranhava que as ordens do Doutor fossem logo transformadas em atos. Tudo ia se transformando, após suas calmas palavras fazerem eco, firmes, enérgicas, nos homens trabalhando e na natureza daquele lugar, tão aparentemente sem vida.
Adiante, muitos metros do casebre, alguma coisa importante estava acontecendo. Pelo que ela entendia, um lugar sendo ligado a outro, com o solo anteriormente empoeirado, agora, recoberto de uma pavimentação asfáltica.
E ali estava sua casa, inexpressivo ponto estático, frente ao progresso itinerante. As obras vinham de longe e para o longe da outra extremidade a que estavam indo. Mas sua casa parecia nada ter a ver com isto...
Era o mais absoluto sertão. Árido, marrom, varrido por poeira fina, erguida pelo ventinho nordestino, às vezes veloz, em outras calmo e agradável. Arrefecendo o calor.
Porém ninguém ligava para o vento...as mulheres, naquele lugarejo, prendiam atrás da orelha os cabelos lisos, longos e sem viço, deixando o rosto sem moldura e sem enfeite. Nenhuma vaidade, pois não cabia naquele lugar tão cansado. Ou seguravam-nos com grampos de prender roupas no varal ou, ainda, com as mãos, apenas.
Tinham elas, um cheiro acre doce de suar natural, um odor de mulher, somente.
Entretanto, nasciam, cresciam, amavam, procriavam. E falavam com mansidão.
Existiam esperando tudo: crescer, seu homem, os filhos, a outra seca e a morte.
 
A mulher de pé rachado entrou na casa. O pó de café já havia assentado no fundo da terrina preta. O cheiro, normalmente agradável ao seu olfato, pareceu enjoativo e nauseante. Pensou: “Deus do Céu, só gumito na hora deles nasce”...
Diante de tal constatação, tentou caminhar até o compartimento contiguo, o próprio quarto. Ali, pensou ela, da janela, chamaria um dos homens que, lá fora, comemoravam, bebendo com muita alegria e com risadas, altas falas, ela não sabia bem o quê.
Mas não deu!
Apoiou-se, então, ao lado da porta do quarto onde havia a cama. Esperou que passasse a contração absurdamente dolorida e deu os passos que seu instinto exigia, buscando a cama para colocar o corpo na horizontal. Este parecia cortado em dois pela lancinante dor nas costas.
Molhada de suor, urina e do viscoso líquido amniótico, prévios facilitadores da vinda de um novo ser à vida, finalmente, a mulher se estendeu.
Pensou, ainda, que iria sujar a sua colorida Colcha de Retalhos dada pela madrinha Palmira, no dia do casamento, mas não sobrou tempo... E nem força. Não sobrou nada.  Só a férrea vontade de arremessar o novo ser à sua própria reivindicação. Deitada ali, iniciou o parto de sua primeira filha.
Neste instante, leves, suas mãos tocaram na cabecinha que despontava. E com as pontas dos dedos, em tal solene momento se chamando Ternura, fez nela o seu primeiro afago...
Em último esforço, dolorida, muito dolorida, foi sentindo a delícia de expulsar um pedaço de si que, a partir deste momento não seria mais ela...embora fosse. Ninguém bateu na nádega do bebê, ele chorou sozinho, em sua primeira comunicação com a vida externa.
A tesoura sem ponta ali estava, na mesinha ao lado. A sua coragem finalizou o que precisava ser feito.
A mulher do pé rachado sorriu. O branco do olho, agora, estava vermelho.
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Lá fora, a euforia do Doutor, dos seus operários e dos nativos do lugar, na satisfação de mais um quilometro de estrada terminada, faziam transparecer pelo espaço de estrada acabada, mais um novo potencial de comunicação.
Dentro do barraco, porém, muito mais barulho fazia, o silencioso e aliviado sorriso da mulher do pé rachado e o brando balbuciar dos lábios daquela criança nordestina.
Comunicando-se entre si!
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Observação: Este meu conto homenageia à irmã do meu  país, mulher do sertão nordestino, que tantas vezes tive ocasião de observar em  sua coragem,   durante  minhas viagens profissionais. Muito escrevi sobre ela,  àquela região, bem como  as dificuldades que passam,  na tentativa altamente nacionalista  de diminuir existentes preconceitos regionais.   
isabel Sprenger Ribas
Enviado por isabel Sprenger Ribas em 17/11/2016
Reeditado em 17/11/2016
Código do texto: T5826509
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