Clarisse
Clarisse pulou da cama e foi se sentar do outro lado do quarto, como se algo estivesse subitamente fora de lugar.
EU não disse nada. Continuei no meu canto esperando a facada.
- Não posso mais fazer isso. - Ela disse.
Permaneci calado.
- Não posso mais fazer isso! Não posso mais ficar aqui... você me ouviu?
- Ouvi.
Clarisse se levantou, ultrajada, e jogou o livro que estava lendo na parede ao meu lado.
- O que você quer que eu diga? – falei, sem me exaltar.
- Não sei. Fale algo. Qualquer coisa.
Mas não havia nada para dizer.
- FALE alguma coisa! Grite comigo, quebre minhas coisas... Só não fique assim calado.
- Olha, Clarisse. Você é bem grandinha e sabe o que está fazendo. Não é como se algo que eu fosse dizer ou fazer pudesse mudar sua cabeça...
Dessa vez foi ela que se manteve calada.
- Você me conhece. Sabe da forma que eu lido com minhas coisas. – continuei.
- Eu sei. Mas não entendo como pode ser assim.
- Eu não me expresso da forma que as outras pessoas fazem. – Então me levantei da cama e fui para a varanda. Clarisse veio atrás de mim e se postou do meu lado.
- Não quero ficar e machucar você.
- Eu entendo. Por isso estou deixando você ir.
- Como você pode ser tão conformista? Como pode aceitar tudo tão passivamente.
- Eu parei de tentar controlar coisas que estão fora do meu controle.
- Isso parece coisa de budista. Você falando isso, soa como cinismo.
- Que seja. Mas não vou chorar por que você decidiu me deixar. Ou que cansou de vir aqui e transar casualmente quando se cansa da sua rotina.
- Não precisa jogar tudo ma minha cara.
- Você não queria alguma reação minha? Está começando a sair algo.
Clarisse resmungou um palavrão, entrou no quarto e começou a juntar suas coisas. Entulhou tudo em sua mochila e saiu do quarto batendo a porta.
Surpreso, me sentei na cama e encarei a tela do notebook onde eu despejava meus textos. Não esperava que as coisas fossem acontecer daquele jeito.
Clarisse então abriu novamente a porta e esbravejou a plenos pulmões.
- NÃO SE ATREVA A ESCREVER SOBRE MIM. Não quero meu nome nos seus textos. Não quero NADA SOBRE MIM. Nem de mentira nem de verdade.
Olhei para aquela demonstração extrema de raiva e não consegui segurar o riso.
- DO QUE VOCÊ ESTÁ RINDO, SEU IDIOTA?!
- Do que você tem medo? Qual o problema com minha escrita?
- VOCÊ SÓ ESCREVE BOSTA, SEU PRETENSIOSO! Não sabe nada sobre mulheres, mas acha que sabe! Fica ai escrevendo sobre casos de amor, roubando as personalidades das pessoas e retratando essas cenas estranhas que só sua cabeça torta consegue produzir. Deixa eu te dizer uma coisa! Ninguém acha graça disso. Por isso que você vai morrer desconhecido, achando que é alguma coisa.
Parecia que eu tinha sido martelado na cabeça, mas de alguma forma consegui manter minha calma.
- Sinto muito se eu te magoei, Clarisse. Sinto muito se fui arrogante ou pretensioso com você. Prometo que não vou escrever nada relativo você ou a nós dois. Pode ficar sossegada.
- VOCÊ É UM VERME MESMO. NÃO CONSEGUE REAGIR NEM QUANDO TE HUMILHAM?
- O que eu iria ganhar com isso? Talvez eu seja um verme. Talvez eu seja um pretensioso. Com certeza vou morrer desconhecido, pelo menos pelos meus textos. Mas eu estou em paz comigo mesmo. Sendo o que eu sou. Você entrou na minha vida. Você se deixou ficar comigo pelo tempo que ficou e conseguiu observar isso tudo de mim. Por que não foi embora antes? Por que ficou tanto tempo com um fracassado como eu?
- Não sei.
- Pelo jeito vou ficar com essa dúvida na minha cabeça. Fica em paz, Clarisse.
A face dela estava carregada de raiva e tristeza.
Eu sabia que ela só estava descarregando suas frustrações em mim. Sabia que EU não era o problema, mas ia fingir que era.
Assim tudo ficava mais fácil. Ela sairia pela porta e eu me embriagaria até dormir. Era óbvio que eu não deixaria de escrever sobre Clarisse ou sobre o que eu estava sentindo. Nada ia tirar de mim essa satisfação.
Cansada, ela saiu definitivamente. Observei pela varanda ela entrando em seu carro e arrancando em direção esquina.
Segundos depois, ouvi um barulho de vidro se estilhaçando e uma pancada forte.
Desci as escadas e corri na direção do barulho, temendo que Clarisse tivesse se acidentado. Quando alcancei o térreo, algo já me comia por dentro. Quase como uma certeza de que tinha sido ela. Tive medo, e o medo foi se tornando desespero. Ganhei a rua e vi um carro parado, de encontro ao poste na esquina.
Havia uma mulher em pé, encostada na porta, com a testa coberta de sangue.
Me aproximei e percebi que não era ela.
Aliviado, prestei socorro à moça e liguei para o SAMU.
Quando os socorristas chegaram, tomei o caminho de volta para casa, ainda bastante abalado.
Eu ia com a cabeça cheia de pensamentos e com as pernas bambas.
Subi as escadas tristemente, me questionando se tornaria a ver Clarisse e se tudo o que ela me disse era verdade.