Incomunicação.
Sente-se aflito. Levanta, apanha um novo maço de cigarros. Abre. Olha no espelho. Pensa,  tem boa aparência, vinte e nove anos, um emprego de ótimas perspectivas. Senta no sofá da sala, algo surrado, pouco atual, mas aconchegante.
O perfume da irmã, ao sair para a festa, ainda está ali, presente. Lembra com carinho. Bonita. Mais que isto, linda. E tão apaixonada!
      
Ora, o que há comigo? Pensa.
Não consegue. A lixeira de cobre, cheia de papeis amassados. Nada serve. Nada. E nada é bom o suficiente, como desejava.
      
A televisão, um áudio visual sem finalidade. Monologando, sem a resposta da sua atenção. Ele, de olhar parado, que nada registra do que aparece na tela... nem escuta. Está longe.
O espírito irrequieto e andante de sempre, desta vez reconhece a própria incapacidade.
Sente sede e busca a latinha na geladeira, procurando não fazer barulho, para não perturbar o sono dos velhos. O pensamento, que pensa sozinho, vai... e vem pensando, quando volta à sala.
Gente boa, os dois. É claro, modos de ser diferentes do seu... seriam? Precisa pensar melhor sobre isto. Gente boa. Boa mesmo.
 
Sabe-se lá porque, seu processo associativo evoca o vestibular. Porque pintaram sua cabeça raspada de vermelho, havia dado um enorme susto na mãe. Ri mentalmente. Ou riu alto?  Não percebeu. Aiiii!Quase corta a língua na lata...

Aquele mundo de amigo em volta. O fim do trajeto da passeata, na Santos Andrade, arrecadando dinheiro para o Diretório. Vozes, um pouco alcoolizadas. Outras, bem.
, cara, , meu, primeiro lugar...legal, cara!
Lembra que viu no meio da multidão o olhar solidário do companheiro de estudo, que não havia passado.
Onde andará o Pernalta?
Sorri da sua realidade.
É feliz? É?
Sente a caneta em uma mão, a sensação gelada na outra. O papel sobre o colo. Mas, do intelecto não sai o que precisa. Perde a paciência. Supõe que o banheiro resolva. Já foram duas latinhas. Levanta, vai. Outra vez, volta. Aliviado? Não!
Apanha o papel. Senta. Levanta. Busca a caneta, sobre a qual sentou.
De novo, olha o vazio cheio de imagens. Senta.
O banheiro não resolveu.
 
Qual foi mesmo a primeira? A primeira? Aquela de franja? Na sua concepção da época, a infantil, mas era linda. Ligeiramente gaga, disto ele lembra, lembra bem. E sorria fácil.

Ele também sorri, agora. Rememora,
 
Os seus primeiros lugares, desde aquela época, uma tônica, sem que para isto fizesse esforço. Costumeiramente ultrapassando os companheiros na compreensão das matérias e por estes, sempre totalmente aceito. A envolvência natural, advinda desta situação o colocava como uma pessoa carismática e o tornava líder, mesmo sem saber. Por isto, líder real, absoluto.
Moreno, de cabelos pretos. Alto, risada oportuna, corpo perfeito e atlético, bom ouvinte e amigo, sempre   muito maior do que precisaria ser, em certas circunstâncias.
 
Outra paixão, logo depois, ele lembra. A Leandra. Loira, estrangeira. Entrou na escola no meio do ano. Cheia de sotaque. Suas pernas tremiam pela garota. Quantas vezes escondeu no banheiro seus instintos que fluíam irreverentes para, fisicamente, pensar na menina, de onde saia com as pernas ainda bambas e assobiando, para despistar a mãe pela demora exagerada.
 
Diabos! Porque estas lembranças agora?
 
Nota que o cigarro apagou. Levanta e desliga a TV, sem função alguma. Vai até a janela e debruçando, olha a leve claridade do andar de baixo. Volta a sentar. Reacende a xepa malcheirosa e procura, de novo, a caneta.
 
O silêncio tira da lembrança a filha do sapateiro. O tempo todo, a tia Carminha falando: Olha o que você faz...juízo, menino...veja bem, heim, veja bem!
Tanta “pegação” na esquina, naquele terreno baldio da Praça da Espanha,  agora preenchido pelo Edifício Nova Zelândia acabou resultando em nada quando Celmira, peitudinha e pronta para o amor e para tudo, preferiu o primo recém-chegado do Nordeste, no ponto de casar, já empregado como balconista das Pernambucanas. Ele, estudante, não era bom partido. Não era!
Sem querer, franze a testa. A ignorância é sempre invencível, para quem não tentam supera-la.
 
Depois, já nem sabe... quem o marcou realmente? Quase não lembra.
 
Ah, sim, a Verinha. Essa, nem é bom pensar. A menina só via o próprio corpo, bom demais, perfeito, também a situação pessoal, familiar e o futuro (meio definido, devido às premissas).
Era a própria futilidade. Naquele tempo, um certo ano, apenas, festas de vestido longo, smoking, plumas, muitas e abotoaduras. Tudo isto, rodeado pelo seu colarinho engomado e irritante. Tudo o que não suportava.
Porém, quanto não o envolviam, na época, as costas nuas da menina e as cochas receptivas ao seu desejo jovem e perceptíveis através da deliciosa  seda pura das suas roupas.
As diretrizes da Embaixada, onde o honorável Pai atuava sob a influência da mãe, portuguesa de verdade, ora pois, restringia toda a capacidade de reflexão da filha única, incapaz de pensar com autonomia.
Uma lástima. Verinha era boa, obediente e boa, apenas.
Porque, então, relembra-la nesta noite de festival do seu tormento?
Tormento. Do dono desta história. Primeiro aluno, sempre. Engenheiro atuante.   Em tudo, o melhor. Sem traumas anteriores. Sem complexos.
Mas que agora luta consigo para poder dizer, num modo pessoal de exteriorização, mesmo que fosse por escrito (é o que, desesperado, tenta), este mecanismo que tanto favorece os tímidos, o quanto a quer, quanto a deseja e o tanto que a ama.

Não acha vocábulos suficientes para expressar à Maria Augusta, a Magu, a franzina, míope e feinha vizinha do andar de baixo, sua companheira de formação e trabalho, com quem convive todos os dias e em todas as horas em que passam juntos na Firma de Construções e Cia, aquela pequenina, única e eterna frase:

Eu amo você. Eu amo!
Por inibição. Não se sabe porquê.

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No 202, Maria Augusta, olho fechado, os cabelos prensados sob a touca de alisar, creme no rosto, sobre a maciez do travesseiro, aquecida pela camisolinha cor de rosa, sorri para a música da madrugada tocando no silêncio do quarto vazio.

 “Amanhã ele fala...amanhã. Amanhã. ”
E dorme esperando.

 
isabel Sprenger Ribas
Enviado por isabel Sprenger Ribas em 16/11/2016
Reeditado em 16/11/2016
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