SILÊNCIO DE RAIVA PARALÍTICA

Para uma plateia de dependentes químicos em tratamento, vai dizendo Agenor.

_ O início da vida está nos ovos.

Esse homem veio administrar um curso de inseminação artificial em parceria com a ONG S.U.S.T.E.N.T.O.. Tudo foi arranjado para que a economia da região prosperasse em qualificação para as mãos rudes desses homens doentes. Labor terapia, também oportunidade de mais trabalho para as mãos rudes dos filhos deles.

Durante seis dias, voltaram para a sala de aula improvisada no antigo celeiro e Agenor, formado nas letras da agronomia, ensinou que a evolução é natural e lenta. Ensinou que o criador pode melhorar o rebanho controlando a produção in vitro. Agenor demonstrou quais partes de carne dos animais o mercado valoriza mais e indicou quais raças devem ser cruzadas para se obter os melhores resultados.

Agenor fez publicidade de seu estoque de sêmen e por fim anunciou:

_ Amanhã passaremos da teoria à prática, o bezerro Soporhoje vai ser castrado.

A fazenda está ancorada como se fosse uma embarcação no pé da serra. Todas as janelas e o alpendre dão de frente para o vale. Nunca se viu céu mais lindo pela manhã, mais furta cor.

À noite, no refeitório, um rapaz conta a história da rês para os apreensivos.

_ O bezerro da Malhada nasceu numa madrugada fria, de chuva. Era tamanha a dor que a vaca sentia que anunciou a própria morte num mugido terrivelmente triste. Morreu parindo. Trouxe ao mundo uma criatura prematura e fraca. Veio ao mundo antes do tempo, quase morreu no bote da onça. Havia mistério: era fraco, mas era forte. Cada dia que passava, todos diziam que não sobreviveria. Deram-lhe nome incomum, Soporhoje. Parece que a vida se resume em saber viver um dia de cada vez, a lição ficaria andando pelo pasto.

Por um instante os ouvintes baixaram a cabeça porque viram suas vidas na pele do bezerro. Eram homens brutos fragilizados, quase sem esperança. Cada um sabia em silêncio que estava sóbrio apenas por um dia. O rapaz concluía a história que contava:

_ Durante um mês, demos trato especial paro o Soporhoje. Foi o tempo que durou a carne da Malhada na geladeira da cozinha.

Hoje de manhã, os homens amanheceram famintos. No café da manhã havia derivados de leite, o que reforçou mais uma vez a lembrança da história do bezerro e de cada homem sentado à mesa. Mas agora, no pasto, o que a vista registra se não for exagero por causa do sono de, é uma ciranda macabra.

Em volta da rês amordaçada, vinte homens inquietos até salivam de olhos arregalados.

Euforia. Dois homens trazem a corda. Atam as patas traseiras. A corda circunda o dorso e segue entre nós apertados para dar um estranho laço.

Berro. Grito, vivas.

A confraria, encerrada no interior da fazenda encontrada entre as serras de Santa Rosa, se agita. O regozijo é a exaltação da masculinidade e outros totens menos à vista. Soporhoje tem os testículos arrancados e para o resto de sua vida vai ruminar esse dia.

_ Arrebente o cordão dentro da barriga dele pra evitar hemorragia. Alerta Agenor.

O bezerro não muge, faz silêncio de raiva paralítica.

Quando o cordão que liga os bagos ao interior do animal é rompido, a turba toda se agita em comemoração como água que vazasse no açude em dia de chuva.

Um levanta as vísceras, outro fotografa e sorri para a imortalidade. A festa nos semblantes não tem hora de acabar mas só por hoje.

Ergue-se Soporhoje sobre patas incertas, titubeante carne viva para nossa futura fome. E muge convicto de alguma vitória. E segue sozinho. Alinha-se aos outros que já foram castrados. E integra o coro abafado do rebanho bem alimentado no pasto.

Alguém pergunta quando o almoço será servido e Agenor responde:

_ Na volta do dia.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 02/11/2016
Reeditado em 07/11/2019
Código do texto: T5810795
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