EU, APOSENTADO...
Não, ainda está bastante longe a “feliz (?) idade”, pela frente vicejarão com abundância muitos anos de luta, labuta, trabalhos em permuta (ih, rima perigosa!) e INSS......... Contribuo social e mensalmente com certa quantia para um agrupamento de idosos. Serei um deles, largado no mundo sem família (ninguém vai querer aturar um eloquente discurseiro de sindicato e tribunal!), sujeito a horários rígidos, luz apagada às vinte horas (excepcionalmente em algum aniversário!!!), nutricionistas e massagistas severas, e estarei também ali? Sem permitirem, darei aulas gratuitas de seresta, mitologia grega e filosofia alemã. Certo é que irei promover alegres bailes mensais, garantindo às minhas custas bolo de chocolate e chá de camomila disfarçado com suco de laranja - depois do esforço, dormir cedo. Careca, eu? Usarei um lenço vermelho de cigano e uma única argola dourada, brinco do lado esquerdo, local do coração.
De certa HQ carioca, me inspiro e antevejo um futuro criativo e recreativo para mim também. Perto de casa, uma pracinha arborizada, com bancos e bustos de pessoas desconhecidas, talvez antigos moradores do bairro que se destacaram em alguma atividade. (Merecerei algum?) // Estarei sentado e de repente revoltado com a mesma figura, cara de autoridade velha no pedestal com placa metálica: “Chega! Estou cansado de ficar o dia inteiro na praça olhando para esse busto!” Cobrirei com um pano bem grande. // Em casa, haverá uma serviçal enjoadiça, que terá envelhecido sozinha, nas mesmas condições que me levaram a optar por ser um orgulhoso sozinho. Já tenho respostas ou atitudes prontas para os resmungos e as implicâncias carinhosas de MARIA. --- Tentarei recreá-la com meus bonecos: “Boa noite! O show vai começar...” Explicação com um raro sorriso quase maternal: Eu adoro marionetes... mas está na hora da minha novela!” E senta na minha poltrona como se fosse ela a dona da casa. --- Na imaginação, estarei seminu em pequena ilha no meio do mar, ela ‘adivinhona’ de cara feia, olhar enviezado, tirando pó de uma estatueta, eu na poltrona, a tevê ligada e explicarei: “Adoro filmes sobre náufragos!” --- Irei me imaginar atado a uma poltrona igual à de casa, linha férrea, trem chegando, DLEM! DLEM! DLEM! Ela, olhar repetido, calada, vassoura na mão. Mesmo som na telinha, trem antigo maria-fumaça, ninguém amarrado. “Adoro filmes de aventura!” --- Ai que eu olhe da poltrona um único objeto sobre o móvel da sala! “Vai ficar olhando para um troféu o dia inteiro?” Calado, juntarei mais três... e continuarei olhando. --- Super preguiça. A mesma poltrona, meu olhar perdido a esmo. “Vai ficar olhando para essa bicicleta ergométrica vermelha o dia inteiro?” Calado, assobiarei, pintarei de verde a bicicleta... e continuarei olhando. --- Em meio a pecinhas de metal, rodas denteadas e engrenagens, caminhando com assobio alegre, ela me acordará: “Seu RUBEMAR! Vai ficar o dia inteiro em casa mexendo nos seus relógios antigos?” Desafinarei de imediato... --- Jamais terei direito a um sonho surrealista, caminhando a esmo entre cores, em minutos me acordará: “Seu RUBEMAR! Vai ficar viajando pelos reflexos dos seus caleidoscópios o dia inteiro?” Um no olho esquerdo e mais quatro brinquedinhos ao meu redor. // Várias oportunidades de ter um ouvinte. Se a conta de luz vier muito alta, zás-trás, rapidinho contato ‘Ouvidoria-0800...’ e terei quem me escute, olhos que farei sonolentos, funcionário ao computador sem poder desligar: “Na excursão em 2011 blablablá., blablablá, blablablá.........” // Na pracinha, homens pintados de branco, fazendo estátua viva horas e horas, chapéu no chão para moedas, tentação para mim. Um vestido de anjo, meia tábua de MOISÉS nas mãos: “Chega de tédio, rapaz! Minha coleção de bugigangas (enorme caixa de papelão, seta vermelha ‘para cima’) é muito interessante!” Ou então, outro a quem mostrarei papéis: “Que tal este? Minha coleção de papéis para presente é muito interessante, não acha?" --- Este na posição do “Pensador”, de RODIN, trarei mesa para junto dele: “Gosta de pensar? Que tal uma partida de xadrez?” --- Um cupido, coração na ponta da seta: “Também gosta de jogar dardos?” Colocarei um tiro ao alvo na árvore em frente. --- Três estátuas juntas, caladas, imóveis, eu discurseiro: “Em 2012 blablablá, blábláblá, blábláblá.........” Explicarei iludido para amigo que chega: “Eles adoram ouvir minhas histórias antigas!” // Não me escapará nem o guarda-civil, imóvel, em pé junto a uma parede, tomando conta de uma exposição de quadros: “Chega de tédio, rapaz! Trouxe algumas interessantes revistas antigas da minha coleção!” // Serei um velhinho nada simpático e muito zangão à toa? Tem o amigo do seu URBANO original, sempre num cachecol de lã, eterna cara emburrada, na mão guarda-chuva fechado: “Bom dia, ALMEIDA! Qual é a bronca de hoje?” “Ainda não sei... mas já estou preparado.” Ou: “Porque a tromba, Almeida?” “Humm... esqueci. Mas devo ter um bom motivo.” Ou: “Que cara é essa, Almeida? A felicidade pode estar ao seu lado...” Vendedor de jaleco branco empurrando carrocinha de tapioca recheada. // Assédio em 2016, seu URBANO lembrará sempre. Pracinha calma, silenciosa, amigo e ele no banco da praça. “Tédio...” no monótono pensamento. De repente, um engravatado jovem e uma loura boazuda quebram a monotonia, entregam ‘santinhos’. “Seu URBANO! Seu MATIAS!” “Tudo bem?” Ele falou bem alto: “Adoro campanhas eleitorais.” (Votar só até 69 anos.........) --- Difícil distinguir entre a realidade e a imaginação de um contista-cronista. Estrada cercada de ciprestes, lago de parquinho, barco no feitio de cisne, a meu lado a amiga MARLENE, professora aposentada de português-literatura (super imaginativa), fecharei os olhos: “Estou cansado desta rotina...” Abrirei. “Raios!” Barco cercado por cinco tubarões pretos. Abraçarei assustado a dama - nem inglesa nem de ferro, porém inabalável.
NOTAS DO AIUTOR:
AUGUSTE RODIN - 1840 / 917 - escultor francês impressionista. Suas mais famosas obras: “O pensador” (bronze: homem em meditação soberba, tamanho reduzido em 1880, ampliada em 1904) e “O beijo” (mármore 74cm de altura).
MOISÉS - Nome significa ‘tirado das águas’. Líder religioso, legislador e profeta hebraico a quem se atribui a autoria da Torá, isto, os dez mandamentos dos valores judaicos.
FONTE:
HQ - URBANO, O APOSENTADO, de A. Silvério - Rio, jornal O GLOBO, datas diversas.
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