Matinal

Com os olhos injetados pela dor, ousou reclamar as pernas à última força que lhe restava. - Abriu a janela. - A cidade despertava. Nada mais estarrecedor que existir. - ouviu ressoar em sua mente.

Havia uma preguiça aguda em existir, mas só hoje admitira para si tal verdade. Parecia-lhe cansativo o mero ato de abrir os olhos pela manhã. Aquela manhã ensolarada que entrava pela janela sem ser anunciada. Perturbador. – Era perturbador viver; tornara-se doloroso; viver lhe doía. Respirar. Falar. Mover-se. Existir.

Só restara-lhe a solidão, a loucura e meio copo de café amargo. De sóbrio o gato sobre a poltrona que acordava a pouco, o cigarro ainda aceso sobre a mesinha de centro queimava exalando o cheiro que mais amava no vício, a fumaça se apossara do cômodo. - Examinou a única folha que conseguiu escrever na noite passada: estava rasurada, machada de café e dor. As palavras transbordavam dor, reafirmavam-lhe a dor.

Pareciam verdadeiras; cruelmente verdadeiras demais para guardá-las para si.

Sentou-se na cama irritada; algo lhe incomodava mais que tudo. A estranheza de suas palavras pareciam-lhe reais demais para serem suas ou talvez só estivesse tudo conturbado demais para analisar naquele momento. - Fragmentos de sua alma acumulavam-se nos olhos, deixou-os cair e rolarem pelo rosto como se pudessem lavar todo e qualquer ressentimento; talvez em algum momento fizessem sentir-se melhor.

Recordou-se de uma música, que falava sobre a rotina, algo como: a rotina corroía duramente, cantarolou este trecho por um segundo e parou logo em seguida. Gostaria de expor tudo aquilo que a matava aos poucos, aos golpes, aos montes, mas nunca encontraria a resposta, sabia disso mais que ninguém. – Verificou se seu coração batia. Ele estava firme, para seu desespero. Batia como nunca.

Entregou-se ao dia da mesma forma que acordou: sozinha. – Pela noite ligou seu abajur na mesinha, sentou-se, atiçou a caneta na mão e escreveu exatamente aquilo que sentia:

“Meu caro, estou à deriva de um delírio de lucidez, por isso escrevo-lhe ainda sóbria, bebi o gosto amargo da bebida mortal que me mata nos últimos dias, a bebida da solidão. Adentrei ao espaço egocêntrico da minha mente que me permite pensar somente em mim, em como sofro e gosto do sofrimento. Meu coração raquítico aperta-se a realidade de ter que me perder de você, mas assim tem que ser. Tu sabe como sou o drama em pessoa, por isso mesmo serei breve em minhas palavras corriqueiras e demasiadamente pobres de enredo.

Isabela Borges
Enviado por Isabela Borges em 26/10/2016
Código do texto: T5803918
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