Dor de Cabeça

Dor de Cabeça,

Um conto de Fabio Ribeiro

“Maldita dor de cabeça” - praguejava Salvador enquanto terminava seu coquetel. O copo utilizado para a bebida era feito para ser servido vermute, foi comprado por Gala somente e apenas para uma única finalidade, servir vermute, e ele sabia que se ela o visse tomando seu coquetel Casanova naquele copo, mesmo a mais querida das esposas perturbaria o mais exótico dos homens e era exatamente por isso que escondia o recipiente atrás do relógio, que estava próximo à prateleira de livros em alemão, dos quais jamais lera nenhum, mesmo porque não sabia nada da língua germânica.

Aquela inquietação, a dor que pulsava nas têmporas, vinha desde cedo, tendo iniciado pouco depois do almoço e já eram mais de seis horas da tarde. Salvador Já havia tomado alguns remédios para expulsá-la, mas não sentia realmente o efeito dos fármacos, por isso resolveu sucumbir a um pouco de álcool. Ele sentou-se perto da escrivaninha em seu escritório/estúdio e conseguia ouvir o alvoroço na sala de estar. Gala recebia amigos e estavam todos muito animados com as conversas sobre reconstrução do país, sobre política e as mudanças sociais espanholas nos últimos anos.

A respiração profunda de Salvador demonstrava uma insatisfação, um enfado com tudo aquilo, ao menos naquele dia.

Quando veio uma pontada mais forte da dor de cabeça, a porta do estúdio se abriu. Gala surgiu através dela e estava belamente vestida, com um lindo vestido azul claro, que deixava seus ombros vistosos à mostra. Um grande colar de contas brancas ornava seu pescoço, contrastando com seus volumosos cabelos pretos e sua face forte.

“Espero que você esteja pronto para irmos ao cinema. Carlos e Rosalina já estão inquietos com sua fuga.” - a voz de Gala era suave, porém imperativa.

“Não me sinto bem. Não quero sair.” - Salvador torceu um pouco o rosto, quase em uma jovial careta.

“Já tem duas semanas que marcamos esse passeio com eles. Você havia me prometido” - a esposa não queria persuadi-lo a ir, não realmente. Ela se preocupava muito mais com algo que estava fora de lugar naquele estúdio. Não que aquele fosse uma área de extrema ordem, mas ela sabia que Salvador escondia um pequeno segredo de seus olhos falcônicos. Olhou de um lado para outro, prescrutou a face do marido, numa tentativa de desnudar aquele pequeno enigma, contudo não descobriu nada. De certa forma Salvador se sentiu aliviado de ter escondido bem o coquetel, e a dor de cabeça fortalecia a cena de que nenhum copo de vermute fora utilizado para tomar Casanova.

“Eu sei, eu sei, mas sinto-me abatido. A dor de cabeça não permitirá que eu preste atenção, ao filme. Vá. Vá e divirta-se com o casal Perez.” - o sorriso dolorido de seu esposo fez com que Gala quase abandonasse a ideia de partir em passeio. Salvador observou isso e completou - “Estarei bem. Apenas quero ficar no escuro um pouco, sozinho, em silêncio. Logo a dor passará e mais tarde podemos ter uma bela conversa e talvez música.” - e sorriu um pouco mais verdadeiramente.

Gala deu-se por vencida, beijou a boca de seu esposo com todo carinho, saiu do estúdio, fechou a porta e seus passos foram ouvidos cada vez mais distantes à medida que saia com o casal Carlos e Rosalina Perez em direção ao centro da cidade.

E então quando veio a total solidão, também imperou o tédio e a concentração cada vez mais profunda em cada uma das doloridas pontadas que insistiam em pulsar na cabeça de Salvador.

Ele, naquele momento, se levantou, pegou o copo com o coquetel e de um só gole terminou de beber no copo proibido. Riu de si mesmo. Foi até ao bar. Preparou outra bebida, bebeu-a imediatamente, sem tomar fôlego e no mesmo copo, sempre, fez um terceiro coquetel.

Sentou-se à mesa. Os restos do jantar ainda encontravam-se sobre ela. Salvador olhou profundamente as formas exóticas do queijo camembert, derretido, estranho que lá estava. Sua mente entrou em ebulição. Fechou os olhos e viu a si mesmo, de olhos fechados, na paisagem bucólica de sua morada, o cheiro dos restos o assaltou e suas eternas inimigas, as formigas, penetraram fundo em sua mente, como as odiava.

Levantou-se novamente, um quarto coquetel já era consumido, caminhou com passos controlados em seu retorno ao estúdio. Foi em direção ao canto onde se encontravam várias telas virgens. Pegou uma ao acaso, algo pequeno, não muito maior do que a capa de um livro. Colocou-a sobre o cavalete e preparou-se física e espiritualmente.

Do álcool já surtia algum efeito amortizador e a animação voltava aos poucos ao seu rosto, apesar da dor não tê-lo abandonado realmente.

E colocou sua perícia em movimento, de maneira incontida, motivado pela vontade de concentrar-se em algo além da dor, para esquecer-se dela definitivamente, levado pela bebida que inundava e tornava seus sentidos mais etéreos. Riscou a tela com ideias que lhe iam surgindo aos poucos, reforçadas pelos instintos primários de seu ser.

A imagem que se formava aos poucos, fortalecia sua existência, surgia quebrando o mundo.

“Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialista fúria da precisão.”

Horas e horas de trabalho incessante chegaram a um ápice com uma última pincelada, exatamente na hora em que Gala e os Perez entraram animados no estúdio.

Salvador os olhou rapidamente e jogou sua cabeça para trás em um arco lento, esboçou um semissoriso incerto. Encarou firmemente sua esposa e a viu em uma contração inequívoca de espanto e admiração. Ainda olhando-a, perguntou com voz firme e carinhosa- “O que acha, minha oliveirinha? Será que em três anos você esquecerá dessa imagem?”

À frente de seu esposo encontrava-se um quadro estranho. A primeira coisa que via eram relógios, apesar de não estarem em primeiro plano, mas logo que os olhos desvencilhavam-se daqueles relógios viam-se capturados por uma figura estranha com uma cabeça macia com um enorme nariz, com longa língua largada para fora do corpo sem boca. Parecia morto ou adormecido.

Então voltou imediatamente a atenção aos relógios. Um deles encontra-se sobre a figura caída. Outro estava à esquerda, sobre o que parecia uma mesa de madeira ou um platô recortado na pedra, junto com outro ainda sobre uma árvore seca. Esses estavam derretidos, macios, impossíveis. Ainda sobre a mesa havia um relógio fechado, rígido, embora estivesse coberto de formigas. Ao fundo era visto o mar e falésias, uma paisagem típica daquela região.

Atônita, pega de surpresa, totalmente maravilhada, capturada pelas imagens daquele inconsciente, Gala respondeu - “Meu amor, ninguém poderia esquecê-la uma vez vista”.

“Então vou dormir, estou cansado e passei o dia inteiro com uma terrível dor de cabeça. Tomarei mais alguns remédios. Qual foi o filme que assistiram? Foi um bom filme?” - ele olhava ternamente para sua esposa.

“Eu não sei... Não consigo mais me lembrar dele!”