O marcador de páginas
A vida do pequeno Jeremias não estava lá muito boa. Ele cresceu de forma bem confusa numa família de pessoas dadas ao pre-julgamento, em meio a xingamentos e maldições. Por vezes, se via sonhando quando é que receberia um elogio apenas por ser criança e amável. Sentava-se diante da vida como um ser humano de idade já avançada, com questionamentos internos tão avassaladores de alma, que mais pareciam um mar de tristezas.
Triste quando uma criança não pode se sentir criança! Mas não, Jeremias era apenas mais um, na descendência de uma família numerosa de muita gente atrapalhada no viver. Muitos de seus familiares, os antigos, davam-se para espíritos e coisas ocultas, sua mãe lhe dizia nas várias histórias que o contava. Porém, as coisas de espíritos nunca lhe despertou interesses.
Quando criança, seus super-heróis eram feitos de borracha dura, provavelmente um silicone enrijecido. Brincava inocentemente na beira de uma poça d'água deixada pelas chuvas que se formava na orla de uma cisterna de água límpida e cristalina, e ali, mergulhava seus super-heróis emborrachados. Parecia mais um pedido de socorro ou até mesmo a expressão de um ódio por ter protetores que mal se preocupavam com a sua situação. Também, eram de borracha, inanimados e sem vida e a inocência de criança lhe falava mais alto.
"Era o menino do quase." Quase que já não tinha sonhos, quase que dormia sem sentir na velha cama doada pelos vizinhos que nem colchão tinha.
Apenas uma esteira de taboa, já desgastada e toda manchada pelos mijos de criança que forrava o estrado de ripas quase totalmente podres. O tempo foi passando. Aos poucos o menino foi ganhando corpo de criança pois era franzino de dar dó, desnutrido e barriga cheia, provavelmente dos muitos vermes! Certo é que não tinha corpo definido, mas já era invejado pelos coleguinhas de escola e admirado por ser tão esperto tendo tão pouca idade. Sabia defender o que queria diante de tal criação tão rústica e tensa de sentires. Tendo crescido em meio a tantos medos, Jeremias foi alimentando seus furtivos sonhos. Por conta do sofrimento, seus sonhos eram os mais simples possíveis. O pobre do garotinho não pensava em ser o um médico reconhecido das revistas científicas, nem um advogado de sucesso do fórum distrital e muito menos um juiz de direito de sua comarca.
Era muito voltado às palavras, reflexivo, passava horas e horas pensando numa situação que poderia ser resolvida em questão de segundos e em toda a saga que a vida estava a lhe oferecer. Ele gostava mesmo era da escrita e, mesmo assim, de longe lhe passava à mente do projeto de criança, o sonho em ser um Mestre em Literatura ou da Língua Portuguesa. Grande e construtivo "foi" o sonho, o sonho do menino!
Em sua adolescência teve seus momentos de poucas e inesquecíveis glórias, onde não teve contato com nenhum tipo de riqueza material, mas teve o conhecimento da riqueza de vivência da vida entre animais e muita fartura num pequeno pedaço de terra arrendado pelos pais. Cavalos, vacas, cabras, galinhas, araras vermelhas, pássaros menores soltos e de todas as espécies, cães de grande porte, bravos e bagunceiros. As frutas eram muitas naquelas terras! Os bichos pareciam sondar a alma do pequeno Jeré, como se lhe convidassem ao viver.
Ele aprendeu a entender os animais que tanto trabalho lhe davam, principalmente as vacas recém-paridas.
Ainda, quando pré-adolescente, banhava as tetas das vacas que haviam acabado de ter filhotes com água morna, na esperança de que na hora da ordenha elas não sentissem muito desconforto. O tempo seguia, os animais ensinaram a Jeremias uma forma de crescer menos agressiva, sentindo e tentando entender a vontade de algo superior que nos permite todas as situações. Se perguntava desacreditado: o que é ser um quadrúpede?
O chorão, por ser tão dado à pesquisa de si mesmo e do mundo, em seu primeiro emprego teve uma grande surpresa: foi feito a ele uma proposta de ser um colportor, ganhando apenas uma pequena comissão por cada exemplar vendido. Ele andava muito, indagavam-se naquelas bandas as namoradeiras nas janelas:
"aquele rapaizinho ali parece que comeu canela de cachorro zangado de tanto que o miseráve anda, coitado!"
Mal sabia o moleque, mas a vida ainda ia lhe pregar uma peça daquelas de terrores que lhe tiraria sonos, os poucos sonhos e acresceria ainda muitas e muitas insônias. Viveu e sobreviveu sempre muito recuado, apreensivo e com medo do mundo e de todos. Parecia um bicho avarento acuado e maltrato! Já quase adulto, relembrava dos momentos em que era "criminosamente invadido ainda na fase da inocência, docilidade, nos quereres tão intrínsecos da criação de Deus na pessoa de uma criança". Doía, mas não se deixava abater por tantos outros problemas enfrentados durante toda a vida em curso. Pensava-se esquecido de Deus e do mundo, amaldiçoado pelos xingamentos que lhe arrepiavam alma!
Ao longo de certa idade, não se sabe aqui ao certo que idade tinha o predestinado ser, via-se enfrentando na vida um monstro que por destino ou carma passara a te minar as células, te açoitar, roubar-lhe o peso à quase peso de frango. Toda a família do menino, 'menino de viver', entrou em desespero, pois, via aquele ser partindo, de olhos tão tristes e faces já sem cor. Os cabelos já nem existiam mais e o amarelão e caroços devastara o pobre do vivente. Andou por um deserto durante quatro meses sem esperança alguma de sair daquela peleja. Ali estava o barrigudo, criado em meios a tantos monstros, líderes de silicone, de alma usada e abusada e de super-heróis de borracha, lutando apenas para defender o óbvio para um ser predestinado aos sofrimentos e aos encantos de ser de verdade: a vida.
Saindo do deserto após os meses de luta intensa, venceu o monstro da tristeza através de muito trabalho. Enxergava nele uma terapia que lhe faria dar o salto para a flor da água.
"O peixinho sem barbatanas queria só respirar na água morna da vida, a qual já estava sem o imprescindível oxigênio!"
Certo dia, teve uma ideia! Resolveu pedir ajuda às pessoas, mas a vergonha de falar o motivo das orações lhe fez abrilhantar ainda mais naquele insight o pedido. Nas remessas de livros que vendia, resolveu colocar dentro de cada um deles um marcador de páginas: "estou vencendo." Tenho apenas mais um monstro que terei que enfrentar até o fim da vida, até segunda ordem!
E sem se vitimar, Jeré perambulava ruas e mais ruas oferecendo seus livros de porta em porta e a cada venda realizada, uma alegria lhe invadia a alma! Diante dos sins era uma festa, mas diante dos nãos, sua alma empobrecia ao azedume extremo! Não desanimava nem diante do maior não já escutado! Jeremias teve outros trabalhos paralelos, formou-se em Técnico em Contabilidade, quase que exerceu, ingressou-se na faculdade Letras e também quase que exerceu, pois, interrompeu seu sonho por causa de uma decepção, essas de alma, muito grande e sem explicação terrena. Decepção esta que carregará para o resto da vida, pois, dentro da decepção havia a verdade de Jeré que fora quebrada, interrompida. Neste espaço de tempo, considera o moleque já superado da decepção e livre de rancores e mágoas.
Mas na pessoa de Jeremias há sempre a memória, as lembranças. E o moleque não se deu por vencido!
O predestinado colportor chegou ao fundo do poço, ou melhor, além do fundo do poço! Não conseguiu se formar, mas superou boa parte dos seus medos. Trabalhou incansavelmente em muitas áreas, mas a que mais lhe deu prazer à vida foi o de ser um colportor que carregava uma bolsa pesada de couro duro.
E quanto de peso que certamente não havia naquela bolsa?
Tanto era o peso que lhe retorcia a coluna ainda em formação no corpo atrasado de idade. Isto não significava nada diante da vontade do pequeno Jeré. Cada livro vendido era um exemplar de sonhos relidos!
A fé transcendeu a vida de sofrimento do moleque, norteou os percalços que continuou sofrida, decadente, porém com desejo de sentimento inabalável. O grande pequeno Jeremias tinha a certeza de que seus marcadores de páginas foram lidos e que alguma coisa no mundo espiritual iria acontecer um dia! Diante do deserto viu-se em plena atividade, de desejos já maduros e forçosamente sentindo tudo, escrevendo poesias e mais poesias, algumas sendo guardadas, outras sendo engavetadas dentro de si, outras ganhando um mundo hostil. O moleque perdeu a vida, ganhou a morte e dela deu um salto dentro das palavras e dentro de si mesmo, fazendo com que a predestinação que tanto lhe incomodava, não fizesse nenhum sentido diante do modo que agora, triste e só, tentava seguir o seu caminho.
A vida lhe deu a morte, a morte lhe deu a vida, a vida lhe deu o desejo e a poesia de si mesmo, sempre inacabada e pura como os seus muitos talvezes. Os sonhos do menino não foram enterrados no deserto, mas boa parte da sua inocência havia se perdido, pois, já crescido, conseguia entender que os lápis que dão cor à vida estão nas mãos de Deus e não nas dos homens. Jeré considera neste contexto que nada acontece sem aprovação divina!
Esta foi a história de um menino que sentiu na pele as dores de ter sua alma invadida e seus sonhos roubados diante de um único direito que ele pensava que tinha: o de viver! Talvez, foi em seu próprio velório que o moleque pôde se encontrar. Uma luz descia dos céus, arrebatava o predestinado farrapo, reforçava-lhe os sentidos e dava-lhe as esperanças de uma nova forma de viver, longe de si e de pessoas que esfaqueavam sua alma.
Nasceu, cresceu, sofreu, creu, morreu e renasceu, apenas em seus talvezes, mas com a poesia ele sabia que marcar páginas é que era o seu recomeçar todos os dias.
Viver para Jeré é bom, morrer também o foi, escrever poesias é sina até o tempo de parar se tornar maior, marcar páginas para ele são esperanças vivas. E diante do nome que lhe é tão peculiar, ele já nem se importa mais! O moleque aprendeu a contar o que é tristeza, desde cedo, sorrindo, chorando, caindo e levantando! Contá-las, mas não vivê-las! E vencendo, o menino do quase, quase que viveu, quase que morreu e quase que pensou em parar à beira do caminho!
O marcador de páginas desbotou, mas a vida do pequeno Jeré não! Floriu e exalou os mais lindos perfumes em forma de poesias! Quase que não teria dado certo, se não fosse a fé do franzino moleque, que de quase fé nunca teve nada.