Prazo fatal
 
A melhor coisa pra um protelador é deixar pro dia seguinte. Há certo prazer nisso - um prazer masoquista, acho, porque no fim é como deixar um espinho cravado na pele e tomar um analgésico em vez de tirá-lo. “Vou tirar amanhã”.

Mas pode ser também o prazer do ócio, de aproveitar o momento pra fazer qualquer outra coisa que não o dever. Um ócio imperfeito porque marcado pela sombra da obrigação. Ou será que é a negação de um dever que torna o ócio perfeito? Porque o ócio pra quem não tem obrigações é rotina, e o que é rotina enche o saco, cansa.

De um jeito ou de outro, pro protelador não há nada como sentir a pressão da data que se aproxima e deixar pro dia seguinte; não é simplesmente esquecer, é decidir deixar, é gozar o momento de adiar, de fazer qualquer coisa que não seja o dever. Até o momento em que o dia seguinte se torna o dia da entrega. E não há arrependimento, culpa ou dor que mudem a data final; nem a capacidade de fazer tudo de novo com novos prazos – com o mesmo sofrimento. Pois não importa se o prazo é estendido - será sempre cumprido nas últimas horas antes da entrega.

Toda essa introdução com divagações sobre a protelação nada mais é que o adiamento da narrativa. O narrador prolixo goza ao adiar, ao dar voltas; e creio que os melhores sabem fazê-lo de modo que o leitor os abrace e sofra quando - segurando o livro aberto - sente a mão direita esvaziando, com poucas páginas, o livro chegando ao fim. Talvez o interesse pela ficção seja mesmo como adiar a vida - pra quem cria e pra quem se perde (ou se encontra) nela.

Eu me entusiasmei nas divagações, mas há uma história a contar e agora passarei a falar de L., a protelação encarnada.

L. sempre sofreu as consequências do adiamento, apesar de nunca ter descumprido um prazo; era um procrastinador, não um irresponsável. Adiava até o limite e aí fazia o que tinha que fazer. Embora algumas vezes o resultado não fosse uma maravilha, respeitava a data da entrega.

A pior coisa prum protelador não é ter que cumprir um prazo, nem a aproximação da data final: a pior coisa que pode acontecer a ele é querer realizar algo que não tenha dia marcado pra entregar. Sem datas não há o prazer de adiar.

E é justamente o caso. L. queria escrever um livro, um romance, pra ser mais específico. Ele nunca trabalhou com isso; ganhou sua grana, ocupou seu tempo e cumpriu prazos na sua profissão, que não tinha nada a ver com literatura. Depois de escrever uns versos soltos e trechos de contos e crônicas, decidiu escrever um romance, sua paixão maior. A decisão tinha décadas. O que durante algum tempo lhe trouxe algum conforto, pensava, é que a maioria dos escritores só escreveu os melhores livros mais velhos; a literatura, em geral, exige certa maturidade, uma visão mais ampla, coisas que vêm com o tempo. Mas o tempo tinha vindo e nada. Sua maturidade se tornou velhice, já esperava a morte e mesmo assim agia como se sempre fosse ter o dia seguinte.

Já não era jovem quando pensou seriamente em escrever o romance. Entusiasmado, escreveu um pouco num caderno. Colocou ali suas ideias e não achou o enredo ruim. Pensou também na forma e rabiscou lá umas opções; sentiu-se criativo, original. Depois desse dia pouco acrescentou ao projeto. Às vezes pegava o caderno, relia suas linhas, refletia, escrevia algumas coisas, pensava nos personagens, no desenrolar da história; até que largava tudo e deixava pra outro dia. Foram décadas assim.

Sem prazo, sem o prazer de adiá-lo e sem realizar o que queria, crescia sua angústia. Aposentado havia anos, o trabalho já não tomava o seu tempo. Só restava ele e a morte, com o livro em algum lugar do caminho.

Talvez o livro fosse um atalho para não morrer completamente; passou a pensar no livro como uma forma de continuar por aqui. Uma forma melhor do que a própria vida. Existir por meio de um livro é mais confortável que se manter vivo, se alimentar, trabalhar, lidar com pessoas etc. Seria existir como objeto, como um discurso que se repete, como um eterno monólogo. Qual a importância da interpretação que iriam dar no futuro? As suas palavras estarão lá. Um autor vivo também não é dono do sentido das suas linhas.

Tinha que escrever, pensava L. E mesmo que não fosse lá uma grande obra, seria sua. Ainda que ficasse esquecida por anos numa estante qualquer ou num sítio eletrônico perdido na internet, se um dia alguém a encontrasse, leria suas palavras, veria seu nome. Mas isso ele mal admitia pra si mesmo; só um narrador onisciente pode dedurar a vaidade de uma obra sequer escrita.

L. sabia que o negócio era escrever e que isso não é só inspiração; já tinha ouvido milhares de vezes que exige transpiração, esforço, e se sentia pronto pra encarar isso. O problema era não ter prazo - tinha tempo e por ter tempo, muito tempo, não via por que se dedicar logo. Poderia sempre começar no dia seguinte, e era o que vinha fazendo havia anos. Sofria a maldição da falta de prazo.

E pra essa maldição, depois de décadas, admitiu que precisava pensar seriamente em maneiras de estabelecer um prazo.

Marcou no calendário. Um mês para cada capítulo: no dia 02 de cada mês tenho que fechar um capítulo. Não funcionou. Ele era o senhor das datas, descumpri-las não traria nada, além de alguma frustração e angústia. Os dias passavam e nada de sentir a tensão do dia se aproximando. Não ligava, não havia ansiedade, não havia gozo em adiar. Ele mexia no prazo, adiava, concedia-se mais um mês. Eram prazos sem peso, sem consequências graves. Ele precisava de um prazo fatal, uma grande cobrança, uma data que se descumprida causasse sérios problemas, porém não sabia como iria se impor um prazo assim.

Persistiu. Tentou de várias maneiras estabelecer um prazo que funcionasse aos seus propósitos e, se eu quisesse (ou pudesse) dar mais voltas poderia descrever aqui outros casos de suas tentativas e fracassos, mas é melhor abreviar nesse ponto: nada deu certo - nenhum prazo foi respeitado, o livro não foi escrito. Nem alguns capítulos. Nada. E o tempo a oprimir, a esmagar a vida mas, sem o necessário prazo; o tempo incerto demais para impedir o adiamento, de dia em dia. “Por que não amanhã?”

E assim foi até o dia em que L. viu na TV um documentário sobre um chá indígena que levava à morte na sétima lua após sua ingestão. Era uma morte tranquila, rápida, indolor; o chá não causava mal-estar; pelo contrário, os relatos eram de grande energia até o último dia de vida, sete luas depois.

L. viu o chá indígena como a melhor forma (talvez a única) de fixar um prazo improrrogável para o livro - um prazo realmente fatal. Já estava velho, sem o livro, a morte seria tranquila, resolveu tomar o tal chá. A história de como conseguiu o chá daria outro conto, mas o tempo oprime, sendo arriscado dar voltas a essa altura.

Tomou o chá, girou sua derradeira ampulheta, passou a ter um prazo – o prazo.

Nos primeiros dias trabalhou com grande energia: escrevia, relia, mudava, acrescentava, cortava, tornava a reler. Totalmente entusiasmado, sentia que o livro sairia; estava criando uma rotina de trabalho e avançou bem nas primeiras semanas, tão bem que um pensamento invadiu sua mente: “sete meses é muito tempo, não tenho que correr tanto”.

L. se convenceu que estava indo rápido demais e além disso não tinha a intenção de escrever nenhum tijolo de trocentas páginas; na verdade, acreditava que mais ou menos duzentas já estariam de bom tamanho. Durante a vida tinha lido romances extensos e até gostava muito de alguns, mas achava que a maioria das melhores obras era mais curta. “É imbecil dar importância ao tamanho, à extensão: lombada e número não são conteúdo. Muitos autores seriam melhor considerados pela crítica se tivessem publicado menos; vários são consagrados justamente por seus livros mais finos.”

“Sete meses é tempo demais. Seis também. Assim como cinco. E também não quero ficar sofrendo com o livro pronto, em infinitas e angustiantes releituras; quero terminar no prazo.” E os dias passavam. “O prazo menor aumenta a energia, o tesão. Dois meses são o bastante. Pra que um romance, por que não uma novela?”

“Um mês e meio. Prazo curto, maior emoção. Um mês, fica na base do agora ou nunca.” E os dias voavam. “Três semanas. Uns contos bastam. Posso ficar em mansões ou barracas, mausoléus ou gavetas, o tamanho não importa.” Uma semana. Cinco dias. “Um conto bem escrito é melhor que alguns só pra fazer número. Quase todos os livros de contos têm uns que são uma merda, só pra completar, como músicas tapa-buracos em discos.” Um dia. “Minha sétima e última lua cheia é amanhã”. Últimas horas. “Minha obra não poderia ter outro tema.” Pra que as aspas se eu já estou no final? Sempre cumpri os prazos. Até a morte. Eis meu conto.