Se me der, eu queimo...

- Se me der, eu queimo! prometeu ela. Não se tratava de nenhum documento que pudesse comprometê-la em alguma coisa, ou revelar um fato desconhecido e embaraçoso. De fato, ela já se havia embaraçado e exposto demais. Após um surto psicótico, provocado por uma crise de transtorno biploar, ampliada por medicamentos errados receitados para depressão e esquizofrenia, ela passara 28 dias internada em uma clínica de reabilitação. Chegara lá amarrada em uma maca após dar entrada em um hospital, porque achava que iria morrer. Sentia frio, calor, sua pele estava ressecada e todos os cheiros lhe incomodavam. Fazia relações absurdas, como se tudo fosse um sinal que lhe indicaria o que devia ou não fazer. Seus pés estavam machucados de tanto andar sem destino à procura de si mesma. Como o cérebro não desligava, estava a dias se dormir e nenhum calmante em alta dosagem lhe fazia adormecer ou acalmar. Para piorar, o inconsciente adormecido lhe trazia a memória de um amor. Um sentimento que nunca viveu e que sequer sabia que existira antes da crise começar. Dentro de seu desespero, apenas a memória dele parecia acamá-la. Foi sua sorte encontrar um médico no hospital que lembrava ele. Sem ele, talvez não tivesse ido até a maca. Chegou na clínica em um sábado frio. Após algumas palavras, foi logo encaminhada para a UTI psiquiátrica. Lá se encontravam pacientes críicos, em sua maioria, esquizofrênicos. Sua companheira de quarto passava boa parte do dia amarrada e gritava ora que iria morrer, ora que iria matar. No meio de tudo, e sob efeitos de sedativos, ela só queria dormir e torcer para que tudo passasse o mais depressa possível. Mas seus delírio de autorreferencia, continuavam firmes e fortes. Na televisão pareciam falar ou se direcionar para ela. E sentia que podiam ler os seus pensamento ou como se pudesse ler os pensamentos dos outros. A medicação que tomava, antidepressivos e antipsicóticos fazia com que se sentisse inquieta, sensível a estímulos e excitada. Mas embora muitos gritassem, chorassem e se desesperassem e apesar de toda a confusão interna e externa, ela estava calma. Alguns dias depois foi promovida. Mudou de ala e pode ficar perto e pessoas com quem pode conversar um pouco melhor. Seus medicamentos foram trocados e uma sensação de que as coisas iam voltar ao lugar começou a tomar conta dela. Observou que as pessoas que passavam pelo seu quarto e tinham alta logo, eram as que se envolviam no maior número de atividades. Então frequentava a academia, a terapia em grupo, saia do quarto, conversava com as pessoas e passava um pouco da sua experiência adquirida no tratamento da depressão.

O médico achou que ela era muito inteligente. Não sabia se seus delírios tinham passado, se estava bem, ou apenas disfarçava. Ela evitava falar sobre o que se passava em sua cabeça e mantinha o foco em planos simpres para quando voltasse a vida real: trabalhar e continuar a academia.

De fato, ela sabia que se falasse com o médico que a televisão parecia falar com ela, ele talvez demorasse um pouco mais para liberá-la. Além disso, falar de toda uma experiência de delírio e alucinações não fazia sentido. Talvez houvesse outro meio mais adequado para descrevê-los.

Veio a alta. Ela foi voltando para a vida normal. Finalmente os medicamento foram acertados. Abandonou todos os que tomara durante quatro anos e ficou apenas com um novo: o lítio. Quatro anos de sofrimento tentando acertar a dose de algo que não funcionava e lhe levara a ter uma crise de mania e ser internada foram deixados para trás, mas com diversas marcas. Dívidas acumuladas, diversas trocas de emprego, relacionamentos incompletos, quilos a mais na balança. Nunca mais seria a mulher livre, independente e segura que todos admiravam. Estaria sempre na tutela de alguém. Todos torcendo, mas em vigília para que nenhuma crise acontecesse novamente. Além disso, não raro, sua irmã duvidava das coisas que ela dizia, especialmente do passao, mas ainda do presente. A única certeza que tinha, é que se alguém lhe desse algum dos medicamentos anteriores, ela queimaria TODOS.

LUCILA GRACINDA
Enviado por LUCILA GRACINDA em 21/10/2016
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