BEIJO NO CORAÇÃO
Reformou do quartel e para ELE era impossível ficar à toa em casa: palavras cruzadas? cuidar da mini horta de temperos, cana e... uma roseira vermelha bastante produtiva? ir ao comércio de comestíveis, como distração, três a quatro vezes ao dia? ir ao banco a pedido de sua rainha? olhar na rua as louras (ai que ousasse um simples “bom dia”, a morena de casa adivinhava: greve do sexo três noites seguidas...), esposa de casamento civil (o que vale é a Lei!) trabalhando meio expediente em escola municipal? Sabia lidar com madeira, arrumou emprego civil para feitura de andaimes e passarelas provisórias sobre a linha do trem de subúrbios evoluídos... Marmita deliciosa, garrafa térmica com o lanche da tarde, passou literalmente a distinguir entre biscoito champanhe (pavê nos primeiros dias de casamento) e o chamado ‘inglês’ (sem açúcar cristal em volta)... levava café com leite e também sanduíches variados e carambola madura do quintal da sogra. Bom, quase vinte e uma horas e não voltara para casa. Impossível hora-extra em serviços de rua... Noite muito aflita, tenebrosa. Dormira onde e - principalmente - com quem? ELA “nada” ciumenta, mas cuidava com carinho de seu ‘bonequinho’ de olhos verdes, 1.80. Ultimamente o galã sentia o que intitulara má digestão, desinteresse em saber do que se tratava realmente... Logo ao surgimento do sol, foi procurar maridão: no hospital estadual do bairro, não dera entrada. Partiu para a empresa, não trabalhara na véspera! Partiu para o hospital militar federal: caminhou bamboleante ainda a tempo de dizer ao médico que não tomara um segundo ônibus (trajeto muito curto), sem necessidade drástica de economizar passagem barata, enfartou ao balcão de atendimento. UTI , conseguiu vê-lo pelo vidro, ligado a aparelhos... Alguns dias de olhos fechados, sono entre calmo e agitado. Quando a mulher conseguiu falar com ELE, sem saber como proceder para confortá-lo emocionalmente, triste e desiludido (de quê?), beijou-o no peito, simbolicamente no coração... Doze dias entre UTI e enfermaria. Fraquinho, estava mais para bebezinho frágil que sargento (gritão?) da farda branca. Esconderam a roupa, não poderia ir sozinho para casa, sogra doce, avisada por telefone, foi buscar, ELA mesma chamou táxi - indicações de remédios, repouso, vida normal depois. Cigarro sempre no bolso: comprava às escondidas, cheiro ficava na roupa... Descobriu um grupo de aposentados, ELE, o caçula pouco além de 50 anos, que jogava carteado a bico de pato ou expressão parecida (mera distração sem rolar dinheiro), numa praça do bairro, até ensinou jogos... Pela manhã, almoço em casa, baralho novamente à tarde. Mais alguns meses, segundo enfarto. Cigarro! Hospitalização mais curta e ‘broncas’ por acaso da mesma equipe médica do ano anterior. Existe a crença, folclórica ou não, do 1-2-3, tudo se solidifica na terceira vez. Novo beijo no coração e o juízo fora da cabeça: cigarro, cigarro, cigarro... Prazo curto, na porta de casa uma patrulhinha com o recado: “levar documentos do casal (no bolso, contracheque da mulher indicou endereço) à administração do hospital”, o mesmo do início da estória... ELA desligou a televisão imediatamente, mãe-sogra percebeu........ Esclarecendo os fatos: jogara a tarde toda, no trajeto para casa sentiu-se mal, um piedoso “jaleco branco” e estetoscópio no pescoço, no botequim ao cafezinho, viu a cena, caído ao chão, levou-o num carro qualquer que ia passando......... Setor de emergência. Bom, foram duas paradas cardíacas, infrutíferas. Pegou os pertences dele, intocáveis, na portaria. Não estória exatamente macabra, mas dias depois, somente ELA na sala, uma voz masculina: “Você não vai mais beijar o meu coração?!...”
F I M