O OUTRO PREDOMINOU?!...

Desde garoto, ELE sempre me disse que lado a lado havia “outro” na intenção de dominá-lo, apenas não sabia explicar – era o seu duplo... Ego e alterego, aprendi com o passar das décadas.

Um destes políticos na intenção de ganhar votos costumava passar filmes livres de censura (alguns, huuummm...) num muro alto e largo de uma fábrica desativada, papel colado nos postes avisava data e horário, população levava cadeiras de casa, geralmente a gurizada à frente, no chão, sentados sobre folhas de jornal. Era uma farra muito boa – namoradinhos de mãos dadas, lanche gostoso gratuito (no domingo da eleição, distribuía carrinhos e bonecas, mas os meus pais escolhiam sempre candidato limpo, de mãos vazias)... e cinema. Meu AMIGO era ‘super extra hiper’ (só me falava assim) impulsionado por... louras bem branquinhas. Um dia surgiu uma família alemã e trocou a doce moreninha Cristina Maria por Fraulein (senhorita) Ingrid. Ainda não se sentiu satisfeito, contudo o nome ‘I-n-g-r-i-d’ o enlouquecia. Nem ainda estávamos na “Era Internet”, pesquisas só em biblioteca longe de casa, leu numa revista sobre a atriz sueca INGRID BERGMAN – biografia, filmes. Encantou-se com ela em “Casablanca”. Passou a colecionar postais coloridos e recortes sobre Estocolmo. Crescemos, saímos do chão para as cadeiras de espectadores mais velhos. Ora, numa destas ocasiões, o tal político sempre eleito e reeleito (?!), o filme era “O médico e o monstro” – película antiga, no fog londrino mais sombras que imagens –, aí ELE teve a certeza do Outro dentro de si.

O mundo dá reviravoltas, sempre excelente aluno, foi para a cidade grande estudar Artes Cênicas. Não perdemos contato, ELE e EU. Melhor teria sido que me menosprezasse como a todos os outros companheiros da escola... Começou no teatro amador, teatro profissional e depois na televisão com pequenos papéis, a princípio sem fala alguma, gradualmente em participações maiores. Em poucos anos, não assim da noite para o dia, o amanhecer em glória, mas progrediu bastante e virou... pro-ta-go-nis-ta da ‘telenovela das seis, das sete, até das nove e das onze’! Fiquei feliz.

Texto daqui, texto dali, um dia um diretor de teatro se juntou a um produtor, ambos extravagantes de ideias, e escolheram um texto clássico da mitologia nórdica, o guerreiro viking RAGNAR LODBROK – o ator teria que ser grandalhão, agigantado, pele bem clara... Meu AMIGO, que há anos evitava o sol, seria o intérprete ideal – poucos antes fizera “Os encantos de Apolo”, deus grego, seminu, plateia feminina delirando. Pintaram-lhe o cabelo, arrumaram lentes azuis, ficou um “verdadeiro” sueco. Não o reconheci de imediato um encontro casual em pastelaria da avenida São João. Pelo texto ou não, treinamento em foniatria especializada ou não, agora até mesmo as palavras em português tinham um estranho sotaque. Pediu minha ajuda, “traduzi”para o atendente chinês o pedido de lanche, mero pastel de queijo fumacento, caldo de cana com pedras de gelo no copo... e tive que inventar (justificativa desnecessária, idiota mesmo!) que era um turista estrangeiro.

Teve de repente um piripaque nervoso e foi às pressas internado em famosa, caríssima e granfinérrima clínica... de repouso (popular hospício público se acontecesse comigo...) – ídolo é ídolo. Esgotamento, palco e tevê ao mesmo tempo, ora peruca de cabelo preto, ora cabelo ‘natural’ amarelado, ora falava como habitante da roça, descalço, rosário de pedacinhos de cerejeira pendurado no pescoço, ora como valente deus guerreiro, armadura metálica e espada não piedosa......... Visitas proibidas. Sonoterapia, comprimidos e soro, psicóloga (rejeitou morena, exigiu loura legítima) diagnosticou um bloqueio impenetrável, indicou passeios pelo jardim bem cedinho, enfermeiro acompanhando com um guarda-sol bicolor, azul e amarelo, cores da bandeira; no noticiário da telinha disseram que ELE exigiu. Vi a cena muito triste, EU na calçada, em minutos fugi, passos largos, por me sentir bastante ridículo em espiá-lo pela grade externa.

Em segredo, apenas a mim confidenciara, desde os ensaios da tal peça estava tendo intensivas aulas particulares do idioma sueco moderno. Se de fato o Outro predominou, não sei explicar. Amanheceu falando sueco mesclado a expressões em inglês (ah, fizera “Hamlet”, pouco antes!), uma bola de borracha em lugar da caveira, de repente gestos com os braços como se guerreasse. Hamlet logo fez ‘as malas’ o desapareceu, o deus o mitológico também ‘no mesmo avião’... e JOSÉ PAULO, o artista “JOPÁ”, amanheceu GUSTAVO, nome secular de rei sueco há muitíssimas gerações, louro, olhos azuis, e numa supra realidade, embaralhamento entre real e ficcional, venceu o segundo, o Outro: nunca mais voltou a ser paulista-brasileiro.

NOTAS DO AUTOR:

ALTEREGO ou ALTER EGO – Do latim ‘alter’, outro + ‘egus’, eu, entendido literalmente como ‘outro eu’, outra personalidade de uma mesma pessoa. Para a psicanálise, o ‘alterego’ é um outro ‘eu’ inconsciente.

MITOLOGIA NÓRDICA – Conjunto de religiões, abordando culto aos ancestrais, crenças e lendas pré-cristãs dos povos escandinavos. Transmissão oral durante a Era Viking, mais tarde textos medievais escritos pouco depois da cristianização; no folclore, algumas tradições mantidas até hoje, recriadas e reinventadas, que renascem também como inspiração na literatura: teatro, cinema e musica, a família como centro da humanidade + agressividade de um povo hostil, habituado a guerras.

F I M