Dois reinos contra o Mundo Paralelo
Depois de sua morte, o avô lembrou-se que tinha deixado uma pendência. Pediu permissão a Deus e encontrou-se com o Imperador Pedro II. O pedido foi direto:
- Quero deixar o Reino de Pinta Silva e o da Caverna do Ouro para meus netos mais velhos, sem interferência de qualquer documentação do Mundo Paralelo. As fronteiras ficarão sempre abertas entre eles e seus descendentes.
- Concedido, disse o Imperador, escondido detrás de suas barbas.
Os dois reinos ficavam depois da porteirinha do Mundo Paralelo. Era só abri-la, entrar, virar-se para trás, fechá-la e tomar posse. E foi isso que aconteceu.
O Reino de Pinta Silva ficou com meu primo Dirceu Santiago Lage e o da Caverna do Ouro ficou comigo, escolha de meu avô. A divisa entre os dois reinos ficou, como sempre tinha sido, desde a primeira alvorada sobre a Terra, a Grande Enxurrada, que desce do Chafariz do Beco dos Canudos até o caudaloso Rio Baiacu. Pinta Silva fazia fronteira a leste com o Califado da Princesa Cachorra Diana, ao norte com o País dos Bicalhos e a oeste com o Principado dos Malachias. Ao sul, como dito antes, com o Reino da Caverna do Ouro, isto é, comigo mesmo. Entre todos, à exceção do Califado da Princesa Cachorra Diana, governado por um califa turco, Mansur Teleiro Primeiro, passava o citado Baiacu, o único curso dágua que corta todos esses territórios, nossa única saída para o mar. Por isso tão importante.
Meu quinhão fazia fronteira ao sul com o Reino dos Bécos, bem definida pelas Três Torres de Babel, que o Mundo Paralelo chama “Coqueiros”, e o Grande Jenipapeiro, além do bambuzal que nos separava de cima a baixo. Esse reino passou a ser governado pelo Príncipe Bolão I, já que seu pai, Rei Béco, o Justo, tinha abdicado em favor dele, o primeiro na linha sucessória.
O velho rei, já cansado de apagar incêndios no bambuzeiro da divisa com a Caverna do Ouro, causa de várias incursões punitivas contra meu reino, largou de mão as maçadas da monarquia e se limitou à sua loja de cortes de tecidos no Mundo Paralelo. Os incêndios eram patrocinados por um súdito rebelde do meu reino, um certo Tõe das Moças, que gostava de ouvir o foguetório do bambuzal em chamas. O Mundo Paralelo trazia baldes d’água de todos os lados, mas o foguetório só se calava quando nada mais havia para queimar. A oeste, meu reino era separado do Principado dos Malachias pelo Baiacu.
Um dia, o exército do Reino dos Bécos resolveu invadir o Principado dos Malachias, cuja porção leste andava abandonada. Os generais César Chum, Mário e Paulo Keys, na ordem de sua linha sucessória, mandaram construir uma ponte envergando todo o bambuzeiro para cruzar o Baiacu. Passaram por cima da Caverno do Ouro, cruzando, portanto meu território, mas não protestei pois era conveniente a ponte para passear de vez em quando em terras alheias. Dali se contemplava o Baiacu de uns cinco metros de altura. Os Malachias nunca apareciam para se defender.
Mas desde o princípio a partição de meu avô não me agradou. Pinta Silva era bem mais bonito. Meu reino tinha a Caverna do Ouro, é verdade, mas nunca deu ouro, só tinha aranhas, morcegos, cocô e escuridão. Nunca reclamei com ele, mas ciumei. Nesse dia da inauguração de Pinta Silva City, a capital, houve muita festa e Primo Dirceu se esbaldou. Balançou-se mais de cinquenta vezes na Grande Gameleira, já com os galhos envergados para servirem de balanço. Todas as vezes eu o empurrava. Quando se cansou, foi a minha vez. Mas, como ele estava cansado de não sei quê, fiquei a ver navios, sem empurrador. E aumentou aí meu desagrado.
Mas o melhor da festa foi o guisadinho de arroz com chuchu, iniciado por nossa vó Lurica e terminado por Mila, irmã do primo Dirceu, portanto também minha prima. O guisadinho foi feito numa panelinha de ferro de verdade e no fogão com dois tijolos. A Princesa Cachorra Diana, que vivia encerrada em seu castelo de tábuas, bem na tríplice divisa entre Pinta Silva City, o País dos Bicalhos e do Califado de Mansur Teleiro Primeiro, desacostumada com o alarido das gentes, latia o tempo todo e arreganhava as fauces ameaçadoramente aos convidados, do lado de dentro do seu castelo. Talvez fosse só uma escrava do Califa, nada de princesa.
Como disse, Pinta Silva era o mais bonito de todos aqueles reinos, países, principados e ducados que se encastoavam no Mundo Paralelo. Tinha um jenipapeiro, três casas de joão-de-barro, muitos pés de cambuí e um abacateiro a cavaleiro de todo o vale do Baiacu. Mas o principal eram dez pés de ipês amarelos que embonitavam Pinta Silva mais do que o Reino da Caverna. Mas tinha um senão naquela maravilha: no bananal da beira do Baiacu, situado em terras inundáveis, é que os habitantes do Mundo Paralelo faziam suas necessidades. Fedia muito, e as moscas azuis faziam festas de arromba entre pedaços de jornais e anúncios de cinema e futebol que serviam de objetos de higiene aos usuários das moitas de bananeiras.
Para mim, sobraram mangueiras novas, uma goiabeira que não dava goiabas e, o único que valia a pena de pé de coisa, era o pé de jambo. Do lado de Pinta Silva ainda havia um ror de pimenteiras que, um dia, colhi às escondidas para vender e comprar uma bomba de bicicleta. Não sei se conto a meu primo, melhor não, porque a bomba de bicicleta estragou. E não tenho o dinheiro da venda da pimenta para repor. Se bem que ele me deve a construção de uma estrada interreinal, que começa em Pinta Silva City e vai até a minha capital, quase em cima da caverna, bem ao lado do Forte Apache da Gameleira do Visgo.
Esse meu primo, apesar das vantagens, se omitiu e só veio uma vez para ver como estavam suas terras. Tinha fugido em velocípede para um lugar no fim do mundo, que se chamava Goiás. Só voltou quando ficou sabendo que meu irmão Tõe das Moças tinha nascido e lhe disseram para cuidar-se, porque nosso avô podia voltar de novo e pedir a Pedro II que passasse ao infante o Reino de Pinta Silva, por abandono do titular. Para mim, acho que veio só, mas também me lembro, coincidência ou não, de uma cantoria à noite, depois do Repórter Esso, em que todos os tios participaram, única vez na vida em que se reuniram para cantar. E cantaram “É a ti Flor do Céu” e “Che Pycasumi”, em português, versão do original em guarani. É aquela música que diz: “Quando ela partiu só rancho vazio deixou para mim”. Eram as únicas músicas que faziam nosso avô chorar.
Quando me mandaram servir o exército do Mundo Paralelo, falei com o primo Dirceu que era hora de passar adiante nossas terras, que nem nosso avô fez conosco. Propus passar para o Tõe, e ele para o Sílvio, seu herdeiro direto. Ele fez ouvidos moucos, hã hã, mas o que fez mesmo foi adotar o codinome de Maninho, voltar a tocar violão e sair pelo mundo a encantar cidades e a empostar sua voz de mágico a pedido de príncipes e reis, mas nunca mais voltou para terminar a conversa. E eu de boca aberta fiquei até ontem à noite, um ponto de interrogação pendurado dos meus beiços, esperando sua resposta. Pode ser que hoje responda.