O filho mais velho

(Conto inspirado numa história real americana)

Apenas nove anos de idade. Agora filho mais velho, já que seus cinco irmãos estavam todos mortos, assim como os pais. Mas não foram sozinhos: levaram outra meia-dúzia, entre irmãos e um primo, da família vizinha.

A intriga entre os Ferreira e os Andrade era antiga. Começou por causa de uma novilha que avançara a cerca e acabou sendo carneada ali mesmo, a poucos metros do limite entre as duas propriedades. A própria cerca era uma encrenca antiga, pois nunca chegaram a um consenso do correto lugar em que deveria estar. E, no episódio da novilha, nenhum dos Ferreira assumiu a autoria.

Aqueles poucos metros de terreno, aquela novilha, entre outras divergências, fizeram crescer um ódio extremamente grande entre aquelas duas famílias, tanto que, quando Maria cresceu o olho sobre Antônio, o próprio pai, percebendo, deu-lhe uma surra tão grande que chegou a ser preso pelo delegado da localidade, mas solto logo em seguida. Isso fez com que Antônio jurasse o quase sogro de morte.

E assim foi: Certa feita, o velho João secava alguns copos de cachaça num bar à beira da estrada, quando Antônio chegou, a cavalo. Assim que apeou, e percebendo a presença de João no bar, empunhou um facão que trazia junto a sela e, sem uma palavra sequer, desferiu golpes cruéis contra o velho que, àquela altura, já se encontrava bastante embriagado e, portanto, indefeso. Os golpes atingiram braços, cabeça e peito de João, que morreu ainda no local, já que a cidade mais próxima, e de onde viria uma ambulância em socorro, ficava a pelo menos 20 quilômetros dali.

Antônio não foi preso, pois escondeu-se, evitando o flagrante. Posteriormente, em seu depoimento, alegou legítima defesa, afinal o velho João também o havia jurado de morte e, no momento em que foi picado a facão, possuía um revólver 38 na cintura. Como ninguém testemunhou a favor de João, bastante mal visto na região, o processo seguiu mantendo Antônio em liberdade.

Não demorou muito para que Antônio, num dia normal de trabalho, caísse numa tocaia enquanto voltava da roça. Pedro e Moisés, filhos mais velhos de João, descarregaram suas espingardas sobre o infeliz, chegando a recarregar algumas vezes para voltar a atirar no corpo já sem vida. A perícia na época contou mais de 10 tiros, e temos que levar em conta que eram espingardas do tipo chumbeiras. Como de costume, os autores fugiram do flagrante e permaneceram soltos. O delegado já previa uma desgraça maior, mas tinha que seguir o trâmite legal dos processos, além do que, na verdade, torcia mesmo para que se matassem logo, assim os problemas acabariam de uma vez por todas.

Moisés foi morto dois meses depois, numa briga, na festa da igreja. Morto a facadas, e pelas costas, por Raul, irmão mais novo de Antônio. Raul era, talvez, o mais tranquilo dos irmãos mas, assim que percebeu Moisés distraído, deixou que o ódio aflorasse e o esfaqueou tantas vezes que teve o próprio corpo banhado no sangue da vítima. Participantes da festa corriam assustados, procurando proteção e sem nenhuma intenção de se envolver no entrevero. Pedro também estava na festa e, assim que percebeu o ocorrido, pegou o cavalo e saiu em perseguição a Raul, que saíra correndo por uma trilha na mata. Foi questão de minutos, se tanto, para alcançar Raul e atropelá-lo com o cavalo. Raul foi pisoteado pelo pesado animal e teve o rosto totalmente desfigurado, além de costelas fraturadas, que vieram a perfurar os pulmões. Morreu três dias depois, vítima das complicações dos ferimentos. Pedro escondeu-se na casa de algum parente, ou talvez mesmo no meio do mato.

Mas não se escondeu por muito tempo. Como tinha um temperamento bastante explosivo, sangue quente, era de certa forma temido na região, o que o fez se encher de autoconfiança para agir como se nada tivesse acontecido. Subestimou Clemente, um homem velho e de saúde frágíl que, não por acaso, era pai de Antônio e Raul. É claro que o velho Clemente não tinha as mínimas condições de enfrentar Pedro de igual para igual, mas qual dos confrontos até então o tinha sido? Clemente aguardou pacientemente Pedro embriagar-se, como de costume e, quando esse finalmente caiu ao lado do balcão da venda, depois de entornar muitos copos de cachaça, foi fácil para Clemente, mesmo com sua saúde debilitada, dar cabo do bêbado com um tiro, a queima roupa, na cabeça. Talvez sabendo o que aconteceria na sequência, o velho Clemente deu fim à própria vida, e assim ficaram os dois corpos à espera do delegado e das providências legais.

Clemente deixara, ainda, dois filhos vivos: Carlos e Jeferson. Depois do suicídio de Clemente, os dois filhos restantes reuniram-se com Bernardo, um primo, e decidiram fazer uma visita à propriedade do já finado João. O plano era claro: acabar com quem ainda lá estivesse. Mesmo sob as súplicas de Joana, a mãe, os três subiram em seus cavalos e rumaram até a fazenda vizinha, não sem antes verificar se as armas estavam devidamente carregadas. Deixaram para trás os gritos histéricos e o choro daquela que já antecipava que eles não voltariam.

Dois quilômetros separavam as propriedades, e os cavalos os consumiram rápido. Quando da chegada dos três, o cenário era bastante tranquilo: a viúva Marta alimentava alguns porcos, Maria preparava o jantar - era fim de tarde - e Mauro, outro irmão, terminava de recolher as vacas que passaram o dia no pasto. O pequeno Felipe, do alto de seus nove anos, tomava conta de Madalena, de apenas cinco, que corria atrás das galinhas.

O trio adentrou a porteira quebrando a tranquilidade que reinava. Já chegaram atirando, cada qual com uma espingarda de grosso calibre. O primeiro a ser atingido foi Mauro, pois era quem poderia oferecer alguma resistência. Um único e mortal tiro, no peito. Ao perceber o que acontecera, Marta corre em direção ao filho, já morto, tornando-se alvo fácil para os disparos que vieram na sequência. Maria também corre, instintivamente, em direção à mãe e ao irmão, na inútil tentativa de socorrê-los e, assim como acontecera com Raul, é atingida por um dos cavalos, sendo pisoteada de maneira fatal.

Felipe, apesar dos seus apenas nove anos, consegue ter ciência exata do que acontecia e, com bastante agilidade, segura a menina Madalena pela mão, correndo com ela para dentro da casa. Assim que entram, tranca a porta e olha pela fresta da janela. Os três homens conversam. Parecem discordar em algo. Um deles, Bernardo, quer avançar em direção à casa, mas é contido por Carlos e Jeferson que, afinal, parecem convencê-lo do contrário. Permanecem conversando mais um tempo. Jeferson aparenta estar bastante nervoso e gesticula muito, fazendo várias vezes menção de se retirar do local.

Madalena está, naquele instante, naturalmente bastante assustada, encolhida no sofá. Assim, Felipe Caminha rapidamente até o quarto dos pais e vai diretamente até a gaveta do armário, na qual sabia o velho João sempre guardava alguma arma. Encontra lá um velho 38 e, demonstrando até bastante intimidade com o mecanismo, examina o cilindro, verificando que estava realmente carregada. Reconhece a arma como sendo um antigo Smith & Wesson herdado do avô. Demonstrando uma frieza incomum, caminha a passos lentos e, em instantes, coloca-se frente aos três homens que já haviam decidido ir embora, tanto que dois deles já encontravam-se de costas. Assim que o menino aparece armado, Carlos, Jeferson e Bernardo se olham. Ignorando que ele pudesse ser alguma ameaça, Bernardo e Carlos riem. Somente Jeferson permanece sério e atento ao menino que, mesmo com mãos trêmulas, engatilha o revólver e faz o primeiro disparo, justamente em direção a Jeferson, que recebe o tiro no peito e cai. Os cavalos empinam, um deles derrubando Bernardo. Carlos, todo atrapalhado, procura o revólver que, naquele momento, já havia guardado no coldre e não tem tempo suficiente para reagir, pois Felipe já tinha engatilhado novamente a arma, promovendo novo disparo que o atinge, também no peito, fazendo-o cair. Jeferson ainda se mexia no chão, vítima do primeiro tiro, enquanto Bernardo permanecia imóvel, aparentando problemas com a queda que sofrera. Carlos, por sua vez, já cai morto. Os cavalos deixam o local em disparada. Através de uma fresta na janela, dois olhos de apenas cinco anos observam Felipe aproximar-se de Bernardo e Jeferson e, friamente, engatilhar novamente a arma. Restam quatro balas. As pequenas mãos já não tremem mais e Jeferson é executado com um tiro na cabeça. Bernardo continua imóvel, porém com os olhos arregalados demonstrando total surpresa com o rumo dos acontecimentos. Uma vez mais a arma é engatilhada e agora é Bernardo quem é executado.

Com as mãos tomadas pela pólvora do antigo revólver, Felipe caminha, tranquilamente, em direção à casa.

Era, agora, o filho mais velho.

Sérgio Kuns
Enviado por Sérgio Kuns em 24/09/2016
Reeditado em 14/02/2023
Código do texto: T5771415
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