O HOMEM CAMINHANDO
Eu vi um negro caminhando pela calçada; eu procurava algo para olhar e dar sentido enquanto vagava o olhar por sobre as coisas de todo dia, o vendedor de gás, o cão sem rumo, o homem de bicicleta,o carro velho e seu dono mais velho ainda, o vazio preenchido pelo zumbido da motocicleta, de novo o silêncio com um zumbido indefinível no fundo.
O negro, reparei nele, com suas calças largas e seu paletó um tanto surrado, me parecia que procurava emprego, (foi só uma sensação); caminhava devagar como se a pressa já não importasse, ia pela calçada de olhar baixo e mãos estendidas, óculos de grau, uma quase barba a lhe cobrir a face, pensava. Eu estava diante de um computador a verificar e-mails, escrever duas ou três poesias para um site, vagando em busca de algo dentro dessa máquina fria e impessoal. De repente me levantei e resolvi espiar mais um pouco aquele homem negro que passara diante de mim, á ia depois da esquina, apressei o passo, me mantive-me a uma certa distância, curioso por indefinição, algo da minha história vinha à tona, uma busca de explicação de certos fatos do passado, indagação, eu ia e vinha, a muito tempo, buscando me reconciliar com certos acontecimentos da minha vida. Nasci debaixo de uma mangueira, no quintal da antiga casa na rua Bahia, 606, não houve como chegar ao hospital, à Santa Casa, minha mãe me pariu ali mesmo, 15 de março de 1953. Oito horas da manhã, o alfaiate, amigo da família, me viu ali deitado, a berrar como um trinco enferrujado, sujo de sangue e pele morena, olhou e disse: ele é preto! Minha mãe, napolitana, olhos claros e pele branca e dentes mais brancos ainda, amava cozinhar, sabia fazer a melhor polenta com linguiça do mundo, ria e chorava, me apalpava e me limpava com seu vestido, me trouxe junto ao peito e me abraçou, meu primeiro abraço, meu primeiro afago. Passaram a me chamar de Preto, apelido-nome que o Zé Benedito, o alfaiate, propusera sem saber que seria o meu nome por toda a minha vida. A cor, que não importava, nunca me deus referências, sempre usei a palavra “preto” de maneira impessoal como usaria “caneca”, para beber água, “sapato”, para cobrir o pé. É claro que os outros reparariam de uma outra maneira, no modo de dizer a palavra, no uso corriqueiro,sentenciando, nela, a raça que subjacente morava na mesma palavra. Meu pai, de tez mais sombreada, lembrando os mouros, os bárbaros, deu-me, por herdade, esta cor que nomeio “marrom”, entre o barro amassado, ainda molhado, e o fim de tarde, que escurece aos poucos, pálpebras do sol se fechando. Seguia o negro, como se indisfarçadamente disfarçasse, procurando nele ver o que eu tinha de lembrança de mim mesmo, sem me recusar a encarar o que nunca me incomodara mas que a muitos havia sido incômodo, pelo nome que lembrava raça e não cor. Quando ele entrou na doceria, de modo tranqüilo e sem aparentar desconforto, quem se preocupou fui eu, sentenciado ao nome, absorvendo a mesma repulsa já percebida e nunca sentida. Procurei, olhando as pessoas ali sentadas, as diferenças que marcariam toda uma raça, todo o corpo de um povo que navegou águas turbulentas sob o que os bois deram em tiras. O esforço que fiz não se demorou a completar, a mãe puxando a filha pequena pelo braço, o homem alto e de cabelos vermelhos dando licença obsequiosa, o ar ressecado na tarde sem chuva trazia e levava pensamentos carregados de névoas e reprimendas. O negro, atendido prontamente pela bela moça com proteção nos cabelos, se serviu de uma fatia de bolo com nozes regada à suco de laranja, belo em sua cor amarelada. À volta, como se cegos fossem, todos se fartavam como se o estômago, órgão vital, não reparasse nada que não fosse colorido e apetitoso. Ao limparem as bocas, engolidoras das delícias servidas, os olhos voltavam a procurar motivos, lealdade ao conceito moral embutidos nos guarda-roupas dos espíritos. O negro, sem disfarçar o prazer sentido, não menos aproveitador das delícias, levou a mão ao guardanapo, esfregou em seus lábios, rumou ao caixa, apanhou a carteira e retirou o cartão de débito. Saiu sem reparar, aparentemente, no movimento das cores que dançam nas íris afetadas, olhou para
a direita, para a esquerda, decidiu que iria pela rua que dava na esquina mais povoada, prédios com escritórios de advocacia, lojas de roupas, óticas, banca de jornal, bancos. Parou diante dos vidros da agência bancária, ajeitou disfarçadamente seu terno, aprumou sem óculos, mas, sem tirar os olhos de si, me viu atrás, a reparar em sua pessoa, observando. Ao se virar, calmamente, sentiu um calafrio, o mesmo que me envolvera; parou, enrijecido, olhou-me por inteiro, o mesmo que fiz, perguntei-lhe o nome, resposta um tanto quanto demorada, (como eu faço quando hesito ou me recuso a responder), me disse que era escritor e que procurava, pela cidade, algo que lhe chamasse atenção, um motivo para continuar escrevendo. Escolhera a mim, resolvera me perturbar a aura, chamando minha atenção, pondo-se como pessoa que sugerisse estar desabitada de orgulho ou preconceito. Eu, o escolhido, havia escolhido a mim mesmo como motivo para a arte da fuga; ali, diante dele, a descobrir ser eu o negro que não pensava em raça ou cor, que gastava o tempo com poesias e canções compostas no velho violão; o gosto do bolo com nozes, arrumei meu terno, eretizei meu corpo, segui como faz a brisa quando sente que pode avançar além dos sinais, além dos túneis de vento, além das encruzilhadas onde se canta o mesmo e velho e bom blues.