Boneca de Pano e a Colcha de Retalhos
Boneca de Pano, na prateleira mais alta, passou a primeira parte de sua vida cercada pelas pilhas de panos de prato pintados à mão, caminhões de madeira, peões, ursinhos e sapinhos de pelúcia, meias de crochê e xales, toalhas bordadas e lençóis enfeitados com renda portuguesa. Ali, entre irmãos confeccionados pela mesma mão artesã, foi feliz e aprendeu muitas coisas.
Um dia, foi comprada e dada de presente a uma menininha. Esperava por isto com grande expectativa, antevendo os momentos de fantasia e diversão que viveria junto à nova amiga. No entanto, qual não foi a sua surpresa ao constatar que foi deixada sobre a cama, encostada no travesseiro, em cima de uma colcha com uma grande estampa de princesa. Dali, via a menininha brincando com uma linda boneca de plástico, vestida de dourado, ostentando uma coroa. Nunca tinha visto boneca assim antes: um belo corpo de mulher, cabelos louros que a menininha penteava sem parar, grandes olhos azuis idênticos aos olhos humanos, um sorriso permanente nos lábios pintados de rosa. A boneca de plástico também tinha muitas roupas e sapatos coloridos e elegantes, que a menininha trocava com frequência, combinando os estilos com diferentes penteados, que ficavam sempre perfeitos no corpo de modelo.
Naquele momento, Boneca de Pano se olhou no espelho da pequena penteadeira cor de rosa: corpo macio, rosto redondo com bochechas róseas e grandes olhos de botões muito negros, sorriso costurado de linha vermelha, cabelos de lã colorida, presos em tranças dos dois lados, no estilo “maria-chiquinha”. O vestido, composto de retalhos de estampas variadas no mesmo tom de vermelho, contrastava com a pele de pano branco, e era de um modelo simples, combinado com sapatos costurados em seus pés. Boneca de Pano sentiu de repente um nó na garganta: como poderia competir com o glamour da boneca de plástico?
Deixou-se ficar olhando para o espelho, assombrada por tristes pensamentos, enquanto o sol se escondia lentamente. Quando a noite finalmente chegou, Boneca de Pano sentia vontade de sumir: agora percebia o quanto era inadequada, sua beleza singela nada significava num mundo brilhante de bonecas de plástico que possuíam carros, joias, casas e até um namorado feito sob medida para sua vida de sucesso. Certamente a menininha jamais lhe prestaria atenção. Era só uma bonequinha confeccionada por uma velha artesã, em um mundo que parecia a milhas e milhas de distância. Por que a menininha iria querer ouvir as tantas histórias que Boneca de Pano havia aprendido só para lhe contar, histórias antigas de mundos esquecidos, se podia criar sua própria história de fama e fortuna com aquela boneca de plástico perfeita?
O vento começou a soprar frio pela janela, e a mãe da menininha veio arrumar o quarto para dormir. Enquanto a menininha guardava os apetrechos da boneca de plástico (com ela junto) debaixo da cama, Boneca de Pano olhava-a com uma dolorosa ternura.
A mãe foi até a janela e fechou as cortinas. “Que frio”, murmurou para si mesma. Pegou a Boneca com carinho, ajeitando a ponta do vestido, e ela se sentiu acalentada pelo doce sorriso de mãe. Havia ali uma certa cumplicidade? Teria imaginado um mistério encantador no cantinho direito do sorriso dela? Boneca de Pano achou que toda aquela tristeza estava afetando seus apurados sentidos de boneca artesanal (havia aprendido, nos tempos de prateleira, que os “artesanais” tinham o sentido mais apurado). A mãe a colocou na penteadeira cor de rosa, bem junto ao espelho. Boneca de Pano viu bem de perto suas costuras, alinhavados, a fazenda colorida de seu vestido. A mãe tirou a colcha estampada de princesa e ajeitou um lençol simples. Depois abriu o armário, e os olhos de botão da Boneca brilharam quando ela tirou de lá uma magnífica colcha de retalhos. Era grande, acolhedora, com retalhos de muitas cores e padrões variados. Foi colocada delicadamente sobre a menininha, que a acolheu com alegria. Em seguida, a mãe pegou a Boneca de Pano e colocou ao seu lado.
Ela jamais imaginou que pudesse se sentir tão feliz. A menininha a abraçou, encostando o rostinho sonolento em seus cabelos de lã. Mas era uma felicidade doída: a visão da boneca de plástico lhe vinha em flashes.
- É tão macia! – disse para a mãe, em um bocejo.
- Sim, querida, e ela vai lhe contar lindas histórias enquanto você dorme – respondeu a mãe, dando um beijinho na testa da menininha enquanto sussurrava um “boa noite”.
A menininha respondeu o “boa noite” já adormecendo, e assim que a mãe saiu do quarto, Boneca de Pano começou a pensar na primeira história que contaria.
Mas nada lhe ocorria. O tumulto de suas emoções, a visão brilhante da boneca de plástico, o abraço sonolento da menininha, a aparente cumplicidade da mãe, tudo girava sob suas tranças de lã, e ela não conseguia formular um pensamento sequer. Não tinha mais a mesma certeza de que queria contar histórias; não sabia mais se suas vontades cabiam naquele corpo macio que a menininha abraçava. Talvez fosse mais feliz no corpo de modelo da boneca de plástico, com aqueles lindos cabelos esvoaçantes, com sua coleção de sapatos e objetos incríveis, com seu namorado sob medida. Sussurrou para si mesma: “É muito triste o destino das bonecas de pano...”
- Em todas as décadas de existência jamais ouvi tamanha bobagem! – uma voz disse em alto e bom som. Boneca de Pano se assustou:
- Quem está aí? O que pode saber sobre bonecas de pano? Não é bobagem querer ser mais bonita e mais brilhante! Seja quem for, você não sabe nada a meu respeito!
- Ora, vejam! – a voz continuava firme – sei muito mais do que pensas, bonequinha tola! Principalmente sobre você... ao que parece, é você que sabe muito pouco sobre si mesma! Nunca vi uma criança dormir com uma Boneca de Pano sem ouvir uma bela história! Que tipo de boneca, entre os “artesanais”, não embala os sonhos de uma menininha? Francamente!!! Sua artesã deve se envergonhar!
- Quem está aí? - agora Boneca de Pano estava aborrecida.
- Não me apresentei, mas que falta de cortesia de minha parte! Essa situação insólita me deixou um tanto desorientada... Meu nome é Colcha de Retalhos, ás suas ordens. Esperava a chegada de uma boneca como você, uma vez que sua antecessora foi doada a um orfanato a alguns anos, antes dessa menininha nascer. Estou nessa família a três gerações. Fui costurada pelas próprias mãos da avó da menininha. Um de seus primeiros trabalhos! – e a voz ficou orgulhosa.
- Sou Boneca de Pano. Fui costurada por uma artesã que não tinha filhos. – suspirou.
- Encantada em conhece-la – e Colcha de Retalhos ficou mais amigável – mas diga-me, Boneca de Pano, por que está em silêncio? Acaso sua artesã não lhe costurou as histórias?
- Na verdade, sim. Também aprendi outras histórias com os panos de prato e toalhas bordadas...
- E por que não as conta????
Boneca de Pano fixou os olhos negros na parede escura. Não sabia exatamente por quê. Não sabia como explicar o sentimento de inadequação que agora sufocava até mesmo sua voz. Não sabia se iria lembrar de todas as histórias.
Ficaram em silêncio por alguns minutos. De repente, Colcha de Retalhos falou:
- Sabe, Boneca de Pano, não sei se você já reparou, mas nós, os “artesanais”, temos uma sensibilidade privilegiada se comparados aos “industriais”. Nossos sentidos são mais apurados. E, só depois de acompanhar a primeira menininha, eu entendi o sentido disso. Olhe para você, por exemplo: é macia, e sua simplicidade de formas trazem á menininha uma grande segurança e alegria, que talvez ela ainda não perceba, mas necessita muito.
- Humpft – a Boneca de Pano fez uma careta de desdém – Macia... sou é cheia e redonda! Não há nada de belo em minhas formas! Não me cabem as roupas brilhantes nem mesmo os sapatos coloridos... meus cabelos de lã não podem ser penteados! – e a voz foi sumindo, até sair só um fio – sou feia... – e a menininha se mexeu na cama, fazendo um biquinho contrariado.
- Bonequinha tola! – Colcha de Retalhos soltou uma gargalhada, que fez Boneca de Pano sentir-se ofendida – ah, bonequinha boba! Não repita jamais essas bobagens! Não posso acreditar que quer ser como aquela boneca de plástico, que nem tem enchimento, muito menos histórias para contar! – suspirou, e sua voz de repente ficou cheia, séria, e o ar ficou cálido como um abraço fraterno. – Boneca de Pano, só perdoarei a insanidade atroz de suas palavras porque sei que ainda não viu nada do mundo, nada além de sua prateleira. Olhe para mim: sou toda feita de retalhos. A artesã estava varrendo o chão, ia jogar fora os restos de tecido, sobras das artes que costurou. Resolveu de repente junta-los, corta-los em quadrados do mesmo tamanho, guardando em uma caixinha, até que fossem o suficiente para uma colcha. Costurava os retalhos quando dava tempo: enquanto isso pensava na vida. Demorou anos até me terminar. Me costurou com suas alegrias e angústias, com seus amores e decepções, com dores e desejos tão ardentes e profundos que me permitem aquecer até no mais vigoroso inverno. Sou feita de histórias: a história da artesã, a história do tecido que compôs tantas histórias, de vestidos a enxovais de bebês, de camisas a cortinas, de revestimentos a lençóis. – Boneca de Pano contemplou a grande colcha. Pensou em cada pedaço das histórias, e na beleza do conjunto harmonioso. - Olhe-se agora no espelho. Repare em cada parte de você: seu enchimento, que lhe dá forma, e lhe faz ideal para ser abraçada. Seu cabelo, com lãs coloridas, que carregam a história do novelo e da coisa na qual foram tecidas; seu vestido – lindo vestido, por sinal – que, assim como eu, é feito de fragmentos das mais variadas formas de sentimentos. Seu sorriso, que representa a menininha que ainda vive no coração de sua artesã.
Boneca de Pano se mirou no espelho. Viu, no escuro, seus olhos muito vivos, muito bem costurados, feitos para ver além. A menininha a abraçou com mais força.
- Bonecas de plástico são feitas em série, querida. Não trazem histórias: vem vazias, para que menininhas a encham com suas fantasias – que vão sendo deixadas pelo caminho. Colchas de princesas podem ser colocadas para enfeitar a cama, mas na hora do frio, sou eu que aqueço e protejo. Ouça a voz da experiência: menininhas crescem. E, se forem talhadas para a felicidade, serão como você: macias, com enchimento, costurando em si mesmas o fragmento de suas histórias de amor e decepções, de sonhos e desafios. Olhe para esta menininha: um dia ela será uma mulher! Já pensou nisso? Se você não lhe contar as histórias que lembrem a ela sua própria história, ela poderá sofrer como você está sofrendo: irá querer ser uma boneca de plástico, sem perceber a riqueza que carrega em cada retalho, em cada alinhavado, em cada lã colorida!
Boneca de Pano não tinha pensado nisso. Durante algum tempo considerou em silêncio tudo que tinha ouvido. Olhou o rostinho doce da menininha, que dormia tranquilamente acolhida pelo calor da Colcha de Retalhos. Olhou-se novamente no espelho: era bonita afinal. Trazia histórias, cores, textura aconchegante. Guardava segredos para contar quando a menininha começasse a virar mulher. Sentiu-se muito bem: não precisava de nada além do que tinha: histórias, e alguém que precisava ouvi-las. Sorriu para a Colcha de Retalhos, que tentando disfarçar a emoção, disse, impaciente:
- Vamos lá, quero ouvir histórias também! A noite só começou...
Boneca de Pano disse então aquilo que nascera pra dizer:
- Era uma vez...
Ah, tão rico e profundo o mundo das mulheres, e das meninas, sementes de mulheres, que mesmo depois de adultas ainda carregarão meninas na colcha de retalhos que é seu coração feminino! Que as histórias de Bonecas de Pano e Colchas de Retalho acompanhem as menininhas quando a noite for muito escura!