Leitura estranha
3º lugar na categoria Prosa do Concurso de Temas Livres do XXIII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, Ouro Preto - MG, 3 a 6 de junho de 2010.
A colheita da banana estava em bom andamento na Fazenda Horizonte, do Dr. Rui Bento. Toda semana saíam 3 carregos de 20 milheiros, nas costas dos burros, para Lagoa Comprida, e dali iam de trem da Great Western para o Recife.
Aquela semana não seria diferente, não fossem alguns contratempos. Choveu bastante no domingo, deixando o solo encharcado, o que dificultava a entrada pelo bananal. O terreno era quase todo de barro vermelho, mas havia algumas minas de massapê que atrapalhavam a passagem dos animais.
Um local, em particular, estava intransitável, necessitando de algum cuidado. Rui logo pensou em improvisar uma cobertura de madeira, por onde passaria um carro de bois. De pronto, mandou dois trabalhadores derrubarem uns paus menores (mulungus, jatobás e outros menos utilizados como madeira) para forrar o chão.
O primeiro problema: quatro dos seus seis bois de carro estavam emprestados, no Engenho Tabatinga, para a colheita de cana daquela propriedade.
Pensou em pedir de volta os tais bois, mas recuou e fez melhor, para o momento. Resolveu assuntar quem tinha uma junta ociosa pela redondeza que pudesse lhe emprestar por uns dois dias.
Chamou seu feitor.
— Júlio, tu sabes quem tem uma junta de bois parada hoje?
— Vou ver, doutor.
Júlio saiu e, em suas averiguações, soube que o Engenho Paróis não estava moendo nessa semana, pois a caldeira necessitou de reparos. A moita do engenho estava abarrotada de canas e o corte foi suspenso.
Quem lhe disse foi o Mestre Leonel, que estava de passagem e havia parado ali para dois dedos de prosa e fazer um reforço no lanche.
Leonel era um flandeiro requisitado por todos os proprietários da região, por dois motivos: era muito bom no que fazia e se tornou o único mestre no ofício que por ali atuava, desde a morte do seu pai, Beroaldo, o “Barão”.
— O Engenho Paróis está parado. Estou indo pra lá agora, consertar a caldeira. Talvez o Major Filinto possa emprestar uma junta. E os touros dele são de primeira.
Júlio voltou ao patrão e lhe disse o resultado da investigação. Ainda mais porque conhecia os bois daquele Engenho.
— Você conhece, Júlio?
— Conheço, sim, senhor. Se vierem Alfaiate e Tesouro, esse servicinho daqui é feito em dois tempos.
— Então, vá lá em Paróis pedir a Filinto uma junta de bois.
Já ia saindo para resolver outra coisa, quando se arrependeu da ordem, ou melhor, da maneira de pedir.
— ´Pera aí, Júlio. É melhor eu escrever um bilhete para ele. Assim fica mais correto, e ele sente mais confiança em emprestar. Espere um pouco que eu volto já com o bilhete.
E foi a sua residência, que ficava no alto, junto a um desfiladeiro a que deram o nome de “Pertada da Hora”, por conta de um incidente que ali ocorrera algum tempo atrás, ao anoitecer ou, como diziam alguns, na “apertada da hora”.
E escreveu o bilhete.
“Horizonte, 22 de setembro de 1947
Prezado Major Filinto.
Antes, dê lembranças a Sá Porcina, que Nininha está mandando.
Venho lhe pedir, por favor, e se não lhe for inconveniente, que o prezado amigo me empreste, por dois dias, uma junta de bois para um trabalho ligeiro aqui em Horizonte. Como eu soube que seu Engenho está parado esta semana, e o corte estava adiantado, não precisando dos bois por enquanto, e tendo eu emprestado os meus quatro bois, de coice e de cambão, para o Compadre Cícero, de Tabatinga, venho lhe pedir esse favor.
O meu empregado Eufrázio está incumbido de trazer a junta, ele que é carreiro dos bons, e de confiança minha. Pode confiar-lhe os bois.
Se demais não for, pediria que me mandasse os touros Alfaiate e Tesouro, que não são de negar serviço. Mas, na impossibilidade de esses afamados touros virem, por não estarem disponíveis, uma junta de bons bois servirá do mesmo modo.
Certo de que o Major me tira dessa enrascada, eu agradeço.
Rui Bento”
Feito o bilhete, Rui o entregou a Júlio e lhe deu a recomendação de enviar Eufrázio para o manejo dos bois.
A distância entre Horizonte e Paróis é de coisa de uma légua, o que daria talvez 3 horas, para ir e voltar com a junta de bois.
Eufrázio, chamado ao encargo, foi estrada afora, com o bilhete na mão e a ordem de trazer a dita junta. Aproveitou a companhia de Leonel, que para ali também se encaminhava.
Chegando a Paróis, foi ter com o Major Filinto.
Filinto Pereira era analfabeto de pai e mãe. Não conhecia um “O”, nem quando lhe apresentavam um copo, ou uma cuia. Mas escondia essa deficiência de todos, envergonhado que ficava em saber-se o único proprietário analfabeto que havia na região. Resolvia seus probleminhas com desculpas esfarrapadas e a aquiescência de Zefa, uma empregada da casa que estudara na cidade o primário completo e fazia as vezes de leitora oficial sua, pois Sá Porcina, a patroa, também era tapada para as letras.
— Bom dia, Major.
— Bom dia, Frazo. Que faz por aqui a essa hora?
— Eu venho trazer um bilhete do Dr. Rui.
Eufrázio, após os cumprimentos, entregou-lhe o bilhete.
Filinto ficou todo cheio de dedos, com aquele pedaço de papel nas mãos. Olhou-o, virou de lado, rodou na mão, deixou de cabeça para baixo, esfregou os olhos, e disse:
— Danado de olho, esse meu! Hoje não ´tou vendo quase nada.
E gritou:
— Zefa, vem cá. Vem ler essa carta pra mim. Meus olhos ´tão ruins hoje.
Zefa, que havia deixado seus afazeres na cozinha para ir ao “quartinho”, em uma necessidade urgente, não lhe respondeu de imediato.
— Zefa, Vem cá, danada!
E Zefa nada de responder.
Aperreado, Filinto mudou de estratégia.
— Mas me diga, Frazo. O que é que Dr. Rui quer? Eu não ´tou lendo bem, por causa dos olhos.
— Major Filinto, o Dr. Rui me mandou aqui com esse bilhete, e me disse pra levar uma junta de bois emprestada. Não sei se é isso que está no bilhete.
Filinto, astuto, e pra não dar o braço a torcer, disse:
— Eita! Meus olhos estão melhorando e eu já ´tou vendo. E não é que é mesmo uma junta de bois que ele pede?
E, apontando para o papel, disse:
— Olhe aqui os chifres!
3º lugar na categoria Prosa do Concurso de Temas Livres do XXIII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, Ouro Preto - MG, 3 a 6 de junho de 2010.
A colheita da banana estava em bom andamento na Fazenda Horizonte, do Dr. Rui Bento. Toda semana saíam 3 carregos de 20 milheiros, nas costas dos burros, para Lagoa Comprida, e dali iam de trem da Great Western para o Recife.
Aquela semana não seria diferente, não fossem alguns contratempos. Choveu bastante no domingo, deixando o solo encharcado, o que dificultava a entrada pelo bananal. O terreno era quase todo de barro vermelho, mas havia algumas minas de massapê que atrapalhavam a passagem dos animais.
Um local, em particular, estava intransitável, necessitando de algum cuidado. Rui logo pensou em improvisar uma cobertura de madeira, por onde passaria um carro de bois. De pronto, mandou dois trabalhadores derrubarem uns paus menores (mulungus, jatobás e outros menos utilizados como madeira) para forrar o chão.
O primeiro problema: quatro dos seus seis bois de carro estavam emprestados, no Engenho Tabatinga, para a colheita de cana daquela propriedade.
Pensou em pedir de volta os tais bois, mas recuou e fez melhor, para o momento. Resolveu assuntar quem tinha uma junta ociosa pela redondeza que pudesse lhe emprestar por uns dois dias.
Chamou seu feitor.
— Júlio, tu sabes quem tem uma junta de bois parada hoje?
— Vou ver, doutor.
Júlio saiu e, em suas averiguações, soube que o Engenho Paróis não estava moendo nessa semana, pois a caldeira necessitou de reparos. A moita do engenho estava abarrotada de canas e o corte foi suspenso.
Quem lhe disse foi o Mestre Leonel, que estava de passagem e havia parado ali para dois dedos de prosa e fazer um reforço no lanche.
Leonel era um flandeiro requisitado por todos os proprietários da região, por dois motivos: era muito bom no que fazia e se tornou o único mestre no ofício que por ali atuava, desde a morte do seu pai, Beroaldo, o “Barão”.
— O Engenho Paróis está parado. Estou indo pra lá agora, consertar a caldeira. Talvez o Major Filinto possa emprestar uma junta. E os touros dele são de primeira.
Júlio voltou ao patrão e lhe disse o resultado da investigação. Ainda mais porque conhecia os bois daquele Engenho.
— Você conhece, Júlio?
— Conheço, sim, senhor. Se vierem Alfaiate e Tesouro, esse servicinho daqui é feito em dois tempos.
— Então, vá lá em Paróis pedir a Filinto uma junta de bois.
Já ia saindo para resolver outra coisa, quando se arrependeu da ordem, ou melhor, da maneira de pedir.
— ´Pera aí, Júlio. É melhor eu escrever um bilhete para ele. Assim fica mais correto, e ele sente mais confiança em emprestar. Espere um pouco que eu volto já com o bilhete.
E foi a sua residência, que ficava no alto, junto a um desfiladeiro a que deram o nome de “Pertada da Hora”, por conta de um incidente que ali ocorrera algum tempo atrás, ao anoitecer ou, como diziam alguns, na “apertada da hora”.
E escreveu o bilhete.
“Horizonte, 22 de setembro de 1947
Prezado Major Filinto.
Antes, dê lembranças a Sá Porcina, que Nininha está mandando.
Venho lhe pedir, por favor, e se não lhe for inconveniente, que o prezado amigo me empreste, por dois dias, uma junta de bois para um trabalho ligeiro aqui em Horizonte. Como eu soube que seu Engenho está parado esta semana, e o corte estava adiantado, não precisando dos bois por enquanto, e tendo eu emprestado os meus quatro bois, de coice e de cambão, para o Compadre Cícero, de Tabatinga, venho lhe pedir esse favor.
O meu empregado Eufrázio está incumbido de trazer a junta, ele que é carreiro dos bons, e de confiança minha. Pode confiar-lhe os bois.
Se demais não for, pediria que me mandasse os touros Alfaiate e Tesouro, que não são de negar serviço. Mas, na impossibilidade de esses afamados touros virem, por não estarem disponíveis, uma junta de bons bois servirá do mesmo modo.
Certo de que o Major me tira dessa enrascada, eu agradeço.
Rui Bento”
Feito o bilhete, Rui o entregou a Júlio e lhe deu a recomendação de enviar Eufrázio para o manejo dos bois.
A distância entre Horizonte e Paróis é de coisa de uma légua, o que daria talvez 3 horas, para ir e voltar com a junta de bois.
Eufrázio, chamado ao encargo, foi estrada afora, com o bilhete na mão e a ordem de trazer a dita junta. Aproveitou a companhia de Leonel, que para ali também se encaminhava.
Chegando a Paróis, foi ter com o Major Filinto.
Filinto Pereira era analfabeto de pai e mãe. Não conhecia um “O”, nem quando lhe apresentavam um copo, ou uma cuia. Mas escondia essa deficiência de todos, envergonhado que ficava em saber-se o único proprietário analfabeto que havia na região. Resolvia seus probleminhas com desculpas esfarrapadas e a aquiescência de Zefa, uma empregada da casa que estudara na cidade o primário completo e fazia as vezes de leitora oficial sua, pois Sá Porcina, a patroa, também era tapada para as letras.
— Bom dia, Major.
— Bom dia, Frazo. Que faz por aqui a essa hora?
— Eu venho trazer um bilhete do Dr. Rui.
Eufrázio, após os cumprimentos, entregou-lhe o bilhete.
Filinto ficou todo cheio de dedos, com aquele pedaço de papel nas mãos. Olhou-o, virou de lado, rodou na mão, deixou de cabeça para baixo, esfregou os olhos, e disse:
— Danado de olho, esse meu! Hoje não ´tou vendo quase nada.
E gritou:
— Zefa, vem cá. Vem ler essa carta pra mim. Meus olhos ´tão ruins hoje.
Zefa, que havia deixado seus afazeres na cozinha para ir ao “quartinho”, em uma necessidade urgente, não lhe respondeu de imediato.
— Zefa, Vem cá, danada!
E Zefa nada de responder.
Aperreado, Filinto mudou de estratégia.
— Mas me diga, Frazo. O que é que Dr. Rui quer? Eu não ´tou lendo bem, por causa dos olhos.
— Major Filinto, o Dr. Rui me mandou aqui com esse bilhete, e me disse pra levar uma junta de bois emprestada. Não sei se é isso que está no bilhete.
Filinto, astuto, e pra não dar o braço a torcer, disse:
— Eita! Meus olhos estão melhorando e eu já ´tou vendo. E não é que é mesmo uma junta de bois que ele pede?
E, apontando para o papel, disse:
— Olhe aqui os chifres!