O Viadinho
Final de expediente em uma instituição governamental.
- Olá Marli.
- Até que enfim Orlando! O dia intero fora, heim? Conseguiu arrumar tudo com a secretaria estadual?
- Tudo. Levei o dia inteiro correndo atrás de assinatura de fulano, visto de cicrano, rubrica de beltrano, mas finalmente saiu à verba para reforma da ala oito. Antes tarde do que nunca.
- É, só que desta vez foi tarde.
- Porque?
- Mataram o “viadinho”!
- Sério! O que houve?
- Hoje quando o Noguemar estava fazendo a vistoria matinal encontrou o coitado esticado no chão todo machucado. Levaram para o doutor, mas não teve jeito.
- Quem fez isso?
- Foram os outros. Só que desta vez bateram até matar. Quando eu falava que um dia isto iria acontecer ninguém me ouvia. Já tinham batido nele outras vezes sendo que em duas quase mataram. Só porque o coitado era diferente. Mas ninguém fez nada.
- Também não é assim Marli. Para onde nós iríamos mandar ele? Você sabe que nós estamos lotados. Mal conseguimos alimentar e medicar os que temos aqui hoje. Você sabe que a secretaria não manda verba pra cá. Sempre tem algo mais importante.
- Eu sei. Mas é triste. Lembra quando ele chegou aqui? Eu avisei que não iria dar certo. Ele sempre foi diferente. Todo delicado, não ficava junto dos outros. E pra piorar era preto.
- Não era bem preto. Era escurinho. Pobrezinho. Até a mãe o rejeitou.
- Deveriam ter mandado ele para Holanda quando tiveram a oportunidade. Eles não queriam adotar ele ou algo assim? Lá ele seria mais aceito.
- Era um intercâmbio, mas é verdade. Lá as coisas são diferentes. As leis são outras. Eles não ficam em cubículos como aqui mal alimentados. São bem tratados. Até parece que eles tinham outros como ele lá, mas a burocracia foi tanta que empacou.
- Isso prova que não importa onde, aceitar as diferenças sempre é complicado.
- É, o preconceito esta em todos os lugares. Basta sair do comum e pronto, ninguém te aceita.
- O pior foi a papelada que eu tive que preencher para explicar o que houve.
- Nem me fale. Mas resolveu tudo, né?
- Claro.
- Se não já querem fazer sindicância e coisa e tal e é aquele inferno.
- É, mas agora já está tudo arrumado. Ninguém vai perceber nada. Será como se o “viadinho” nunca tivesse existido. Já deu meu horário e eu vou embora. Você pegou escala amanhã?
- Peguei. Trabalhar em pleno domingo. E você sabe como é isso aqui no domingo. Dia de visitas, as mães com os filhos pequenos correndo para todos os lados.
- Domingo é dia de levar as crianças para ver os animais.
- É verdade.
- E nessa história pobre do “viadinho”.
- “Viadinho”! Oh Marli! O correto não é “viadinho” com “i”, mas veado ou cervo.
- Tá bom, tá bom. Falou o especialista. Até segunda.
- Até.