Infravermelho

Os motoristas de ônibus citadinos. Esses seres moribundos, anestesiados pelo calor abafado nojento, pela fumaça pelo sono, pelas contas pelas preocupações. Motoristas de ônibus, porteiros, garçons. Atendentes de motel, não. Talvez em casos extremos. Onde as moças dizem aos maridos que vão fazer a unha.

Eu tenho um serviço cujos vencimentos me dão o privilégio de viver da mão pra boca. Nada de viagens. A cerveja que bebo agora é o pacote de feijão que vai faltar no fim do mês. Sobrevivo.

Os motoristas de ônibus aparecem com a caixa de metal comprida e param ao sinal. Será que sabem que a pessoa que ficou do lado de fora nunca mais verá a que subiu? Eu já fiquei tantas vezes do lado de fora que nem sei. A impressão que tenho é que tudo acaba quando elas sobem a escada: eu olho a bunda pela última vez, olho a cara de tédio do motorista, vejo a porta gemendo enquanto fecha, o ar comprimido do freio sendo solto simulando um peido. A coisa vai, eu fico e, invariavelmente, também solto um peido. O cansaço baixa, misto a uma sensação de liberdade. De alívio, descompressão, felicidade.

Felicidade. Sou o que planejei ser e não me sinto realizado. Quando é que vem o senso de completude? A tal felicidade? Propus-me a nada ser. Pus à bancarrota tudo quanto é possibilidade de ser um advogado, um analista de sistemas, psicólogo, professor, jornalista. Mas a felicidade está atrelada ao saldo positivo no banco. Nada sendo com saldo positivo eu me refestelava feito porco na lama. Mas meus amigos advogados, jornalistas, professores e analistas de sistemas estão tão fodidos quanto eu. E se ressentem do que têm. Do que são. Estranho.

Ela subiu naquele ônibus depois de ter me ensinado aonde fica, que aparência tem e como é que se chupa um clitóris. Dizia que eu não era um gato lambendo um pires de leite e tampouco um pedreiro chupando manga depois do almoço: eu tinha a gana, a assiduidade, o desejo, o talento, mas que me faltava direcionamento, um pouco de técnica e delicadeza. Dizia isso abrindo as pernas, abrindo as carnes, pressionando ou puxando, e lá aparecia o enigmático, famigerado, embusteiro - e eu sorria e o prendia entre os dentes, me divertindo com as contrações das pernas e com o jogar de cabeça pra trás, queixo pra cima, biquinho dos peitos pra cima, o umbiguinho envolto em penugenzinhas, gemidos contidos, unhas nos braços, apertões nos pulsos, mordidas nos travesseiros; ficava ali uma eternidade, a língua não é mais a mesma, o maxilar doído, a falta de saliva; até que acontecia - o inferno em si.

Não sei de porra nenhuma. A anatomia muda. Assim como o calçado que sobe o degrau do ônibus - interbairros,intermunicipal, interestadual, interestelar. Sapatilha, chinelo, sneaker, bota, bonita. Pé preto, com chulé, sujo. Calcinha rasgada. Calcinha ausente.

Quero dizer: ela desceu do ônibus. Lado contrário. O começo. Saltou, e saltou direto pros meus braços. Sem romantismo. Era querência, mesmo. De anos. Recíproca. Beijamos ali entre os bêbados, na noite quente. O oi não tinha sido dado. Os passos estavam sincronizados, induzidos por força maior para um lugar conhecido porém ainda não explorado. Um desses, onde vozes metálicas pedem RG, dinheiro ou cartão, quantas horas, com hidro ou sem hidro, dão uma chave com número e desejam boa noite atendendo outros. As mãos foram acontecendo nos corredores. As toalhas ensacadas jogadas ao alto. Os mini-kits-de-higiene jogados ao alto. A boca. O oi ainda não dado, sendo substituído por gemidos esganiçados e palavrões entredentes. Três dedos buceta adentro, calcinha pro lado, pau pra fora, pra esquerda, esmagado - o inferno em si. Esqueço quem sou.

Todo mundo sabe como isso termina.

12/09/2016

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 12/09/2016
Reeditado em 12/09/2016
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