Pou
Logo ele que gostava de “calor humano”, do “olho no olho”, já não tirava o olho daquele frio monitor. E pensar que há cerca de um ano atrás a única vez que havia ouvido falar de PC tinha sido na época do impeachment do ex-presidente Collor, que achava que mouse, era o “Super”, aquele ratinho musculoso do desenho, e que teclado era o instrumento musical tocado por Frank Aguiar. Logo ele, que nem telefone celular tinha, e era crítico ferrenho da maioria dos inventos tecnológicos. Sua escravidão virtual o incomodava sobremaneira, até dona Angelina, sua senhora, reclamava. Ela mesmo que interpretara como milagre o fato de o marido boêmio passar a sossegar o facho em casa, agora o incentivava a sair: Vai pra rua homem, o dia todo enfurnado nesse quarto em cima desse computador!
Honorato Bittencourt, ou simplesmente Bittencourt era de meia idade, um tipo boa praça, comunicativo, extrovertido, cativante e gozador, vivia cercado de amigos. Ele, que trabalhava de arquivista numa repartição pública começou a mudar depois que instalaram um computador em sua mesa para informatização dos arquivos, em princípio, isto muito o contrariou, mas ele nada pôde fazer, a ordem vinha “de cima”. Todos os funcionários leigos na matéria foram obrigados a fazer um curso de capacitação, desses, Bittencourt era o menos animado, mas pasmem! Bittencourt ficou encantado com todas as “mágicas” que a tal máquina podia fazer, e não quis mais outra vida ao conhecer as redes sociais, ficava quase o dia inteiro “socializando”.
Bittencourt, que a essa altura já possuía um moderno aparelho de telefone celular, se transformara no tipo de pessoa que mais abominava, aquelas que ficam navegando em meio aos amigos à mesa do bar. Não o perdoaram, e o apelidaram de “Bittencourt, comenta e compartilha”. Numa certa madrugada, enquanto navegava ele leu uma reportagem sobre um grupo de cientistas e web másteres que havia desenvolvido um chip para ser instalado no lóbulo frontal dos seres humanos, o tal chip faria com que as pessoas realizassem em seus próprios corpos todas as funções de um computador, com isso, não ficariam presas a nenhum equipamento. Bittencourt mais que de pressa inscreveu-se como voluntário do tal experimento que faria dele uma espécie de ciborgue. Como não houve mais ninguém no mundo que se dispusesse a participar da experiência, rapidamente chegou uma comitiva de japoneses ao Brasil e fez a cirurgia em Bittencourt.
Após o implante do chip no cérebro de Bittencourt ele voltou a ser o “mesmo” ser sociável de antes, agora, no entanto, com a “vantagem” de poder acessar a rede com um simples pensamento ou comando de voz, ele navegava ao mesmo tempo em que conversava, bebia ou jogava futebol com os amigos. Contudo, o tal experimento trazia riscos [não revelados por seus inventores], e Bittencourt, que sempre fora cordial, tornou-se calado, grosseiro e desrespeitador. Ele teve sua mente invadida por hackers que o infectaram com um vírus Cavalo de Tróia. Certo dia teve um mal súbito, e foi levado as pressas ao hospital. Os cientistas e web másteres japoneses que o acompanhavam quinzenalmente conseguiram formatar seu cérebro, no entanto, não sem sequelas.
Bittencourt já não reconhece ninguém, nem mesmo seus familiares. Vive incomunicável, em estado de catatonia, recluso em seu quarto. Necessita que o alimentem, dê-lhe banho etc. exatamente igual aquele bichinho virtual, o Pou.