O MENININHO PERDIDO

Era mais uma madrugada fria e silenciosa para aquele “menino” de aproximadamente dezoito anos de idade.Uma criança perdida na solidão de seu próprio quarto, onde a cortina estava velha demais , o tapete desbotado e o criado, totalmente “mudo”.

Ele revirou gavetas, contou moedas e se jogou de qualquer jeito em cima da cama, tentando disfarçar toda a ansiedade que lhe devorava por dentro.Roeu unha, suspirou várias vezes e tentou fingir que estava bem.Aliás, tudo bem se quisesse ir dar uma volta.Melhor ainda se conseguisse ficar, mas como ficar se lhe faltava algo? Quem sabe uma cerveja, um cigarro ou qualquer outra coisa que lhe deixasse mais sossegado...

Que droga! – pensou - Que droga de droga! – poderia ter pensado, porém preferiu recontar o dinheiro, matutando um jeito de multiplicar o valor. Com os olhos famintos devorou cada objeto ao seu redor e percebeu que ainda tinha um tênis quase novo na sapateira.Sorriu, aliviado:

- É o Salvador da Pátria! – murmurou.

Agora era só oferecer o produto e pronto.Foi assim com o relógio, com a jaqueta e também com outras bobeiras que nem fizeram tanta falta.Aliás, uma ou duas peças de roupa eram suficientes para que ele vivesse feliz.

Colocou rapidamente o tênis na mochila com medo que chegasse alguém. Alguém, quem? Dividia a mesma casa com o pai, porém era como que se fossem dois estranhos. Não se falavam, não se olhavam e não se conheciam mais.

Melhor assim.Desta maneira não precisaria lhe dar satisfação quando chegasse em casa com as pernas trêmulas e os olhos vermelhos, numa viagem sem fim.

Correu até a porta do quarto com a mochila nas costas e ao ouvir o assobio do pai sentiu o peito bater mais forte.Qualquer sinal de vida que viesse dele era muito importante.Mesmo que fosse apenas um assobio desafinado!

O pai estava ali.Talvez assistindo TV ou folheando um jornal velho, do mês passado.Era sempre assim.O menino poderia lhe esperar, se quisesse, mas ele nunca aparecia.Nem pra dar boa-noite ou uma bronca cabeluda.O seu corpo estava presente, porém a ausência do espírito era explícita.

- Que raiva! –pensou – Se ele abrisse esta porta agora eu falaria um monte; que é um cara pirado, um sujeito desnecessário e um pai ausente...Que jamais se preocupou comigo ou com ninguém.

O assobio foi se tornando cada vez mais próximo.Parecia que o pai estava caminhando lentamente até a porta daquele quarto. Será? Que demora.Não chegava nunca.

Então foi escorregando o corpo frágil no cantinho da parede, atento para o barulho que vinha de fora.Suspirou, nervoso.O pai estava chegando, como a tanto tempo não chegava...Mordeu o canto dos lábios, ansioso.

Seria tão bom se ele abrisse a porta de repente e iniciasse uma conversa qualquer! Poderiam relembrar as férias no camping do Ailton, a excursão em Aparecida do Norte ou outros momentos que tiveram juntos .Foram poucos, porém inesquecíveis.Passavam o domingão na praia, tomavam Tubaina na garrafa, tinham uma Variant amarela e a televisão ainda era preto e branco, com uma palha de aço grudada na antena.Velhos tempos! O pai era uma figura, muitas vezes indesejada, porque depois que pedia o primeiro copo de conhaque com limão, uma nuvem negra pairava sobre sua cabeça e tudo se transformava numa terrível tempestade de lágrimas.A voz ficava mole, áspera e repleta de palavras pesadas que saiam de sua boca feito um vendaval. Causava briga, intriga e bate-boca...Poderia ter sido diferente, mas era impossível dar uma gargalhada se não bebesse um pouco.Um pouco? O suficiente para fazer as pessoas tristes, principalmente a própria família.Só que ele nunca quis ajuda e ainda ficava uma fera se tocassem no assunto... O alcoolismo ainda não era considerado uma doença e o pai era motivo de chacota pelas ruas da cidade.

Então com a voz tímida iniciou uma conversa quase muda, como que se estivessem cara a cara, após tantos desencontros diários.

“Pai, mais uma vez estou só com as paredes do meu quarto, á procura de algo que me faça um pouco mais feliz...Os livros de literatura continuam empilhados no armário, os travesseiros coloridos espalhados pelo chão e o nosso sorriso retratado num retrato antigo já faz parte de um passado que nunca mais se fez presente.

Talvez me ache um pouco confuso.Talvez me encontre bastante atrapalhado, mas é desta maneira que eu lhe contarei uma história feita de sol e chuva, inverno e verão, amor e ódio.Pai, agora é sério; me escuta .”

Nisso criou coragem, soltando a voz para que ele pudesse ouvir :

“Quando eu era criança acreditava em Super-Homem e muitas vezes pensei até que você fosse um herói, só que a vida nos levou para caminhos diferentes e nos perdemos um do outro.Não sei quem foi o culpado e na verdade estou só diante do meu medo e da própria solidão .Busco as palavras mais bonitas para lhe dizer.Ensaio os gestos mais expressivos, porém estou órfão e esta saudades me devora.

É como que se estivesse lhe esperando á anos...Quem sabe á dezoito anos, desde aquele nosso primeiro encontro na Maternidade, exatamente no dia em que nasci, e você se foi.Sei que não foi uma partida brusca, daquelas que se desaparece no mundo de repente, mas foi um distanciamento discreto, como que se você sumisse um pedacinho por dia.

Primeiro no dia do meu aniversário, no Natal e depois nos outros dias do ano. Então fui me acostumando com sua ausência, mesmo sentindo tanto a sua falta ”.

O assobio que parecia infinito, se acalmou e aquele pai emudeceu diante da porta do quarto.Ficou ali, estagnado. Era muito difícil ultrapassar a barreira da omissão.Parecia impossível ficar cara a cara com a realidade.Deixou-se escorregar do outro lado da parede, como que se um corpo fosse a continuação do outro.

Estavam tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes!

A alma do menino agigantou-se naquele instante que conseguiu se colocar de pé diante de tudo que o incomodava .Sua voz estava clara e seu coração, iluminado.

Percebeu que o pai lhe ouvia, pois estavam unidos no mesmo sentimento.Era um desabafo, após anos de silêncio, amargura e ressentimentos.

“Pai, eu era apenas um menininho comum, desengonçado e cheio de peraltice expressa num olhar maroto, á procura de um pipa colorido no meio do céu .E nos meus sonhos de moleque eu era Rei no meu próprio mundo .Fui dono de todas as estrelas , de todos os brinquedos e de todos os doces. Tinha sonhos e desejava um futuro melhor , onde tivesse um lugar garantido para mim e para todos os meus apetrechos infantis .Um lugar para o pião , para a bolinha de gude e para o trator de plástico que eu insistia em puxar por um barbante .Mas não havia aprendido que para se conquistar este espaço na vida eu precisaria ter um passaporte especial ; algo que me faria criar asas ultrapassando todos os limites e superando qualquer obstáculo.

Ninguém me ensinou que a verdadeira liberdade começa de dentro para fora e que para caminharmos em harmonia com o Universo temos que plantar o amor ao próximo e principalmente a nós mesmos .É preciso valorizar o que possuímos de melhor, que é o nosso corpo , nossa saúde e a nossa VIDA . E ás vezes para que este equilíbrio continue forte, temos que aprender a dizer NÃO.

Não ás DROGAS ! Não á qualquer pessoa que tente nos enganar, dizendo que ela é um BARATO .A DROGA tem um preço muito caro: a nossa família, a nossa dignidade e principalmente a nossa liberdade .E isto tudo eu tive que experimentar para saber. Você pai , foi muito mais do que um homem para mim.Foi um espelho porque consegui enxergar através dele o “fascínio ”que este mundo opaco possui .

Eu tinha olhos castanhos, meus irmãos tinham os olhos esverdeados e você, pai, tinha os olhos sempre vermelhos.Algumas pessoas riam de você, mas eu não achava graça em nada .Nem mesmo quando caia no sofá, totalmente desnorteado, acordando apenas no outro dia. Parecia outro , me chamando apenas para dizer que eu iria crescer e me tornaria um homem de verdade .Um homem feito ...Feito quem, mesmo ? Sei lá.Um homem feito você. Claro .Um homem que tinha uma carteira marrom cheia de badulaques ; uma foto antiga, um bilhete da sorte e um monte de contas atrasadas .

Depois ligava a TV no noticiário e se emocionava quando via as últimas notícias :

- fome no mundo, crimes horríveis, menores abandonados .

Só que eu era um deles ...e você nem percebia ”.

Neste instante pode-se ouvir do outro lado da porta um gemido amargo, como que se o pai estivesse sentindo as dores da alma.E o menino continuou, também dolorido:

“ Aprendi com suas palavras sem nexo que aquilo era a vida e quando a encontrei pelas esquinas da cidade, não estranhei, porque já a conhecia de dentro da minha própria casa.Primeiro ofereceram um cigarro que para mim não teve gosto de nada . Mas foi uma questão de tempo e logo me acostumei .No começo eles me davam UM, DOIS até TRÊS, só que depois foi ficando difícil conseguir e quando percebi já estava roubando”.

O pai balançou a cabeça, com a certeza que já conhecia aquela história.Tantas vezes tentou ignora-la, mas agora seria impossível escondê-la de si mesmo.

“Pois é .A festinha de aniversário do Betão foi um fiasco e apenas consegui me divertir quando “ganhamos”de uns camaradas umas latinhas de cerveja .Eu ria muito e após alguns goles já me sentia zonzo .O chão parecia sumir e tudo era engraçado !

Meus amigos quase nem apareciam na escola e faziam o maior sucesso com a turma ! Tínhamos várias brincadeiras e a nossa preferida era depredar as casas do bairro, pichar os muros com palavras pesadas, intimidando toda aquela gente sem graça que apenas servia para implicar !Quebrávamos orelhões , judiávamos dos animais e ainda tínhamos fôlego para atazanar a vizinhança com a nossa presença indesejada .E o que você dizia disto ? NUNCA falou nada ! Fingia não ver .Estava muito ocupado com seus problemas pessoais.

Nas verdade não tínhamos assunto. NÃO conversamos sobre o medo que eu tinha de escuro ; sobre as minhas espinhas, sobre os meus complexos...Nunca perguntou se eu gostava do jeito que me apelidava , do modo que me ignorava perto dos seus amigos, das piadas que fazia do meu corpo desengonçado, que ainda estava em crescimento...

Nesta época eu já não achava mais gostoso procurar pipas coloridas pelo céu e jogo de taco, bolinha de gude, álbum de figurinha ...NÃO ERA LEGAL !A minha vida havia mudado , se transformado , porém eu não havia amadurecido .

Cresci junto com os meus novos ideais de vida ; “aqueles”que não se encontravam em nenhum livro escolar . “Aqueles” que me deixavam cada vez mais distantes da realidade.Da minha realidade .Os sonhos de menino se perderam nos labirintos de um mundo estranho que se concretizava diante dos meus olhos e passei a buscar incessantemente novas emoções. Sabia de cor o preço do maço de cigarros, da latinha de cerveja ... Você apenas fechava os olhos ( vermelhos) para não se encontrar EM MIM, e continuava a viver como que se nada estivesse acontecendo . Talvez tudo não passasse de um pesadelo terrível. Pesadelo que criava forma , cheiro, fumaça ...E numa noite qualquer fui apresentado àquela erva que não tinha cara de droga. Consumíamos em grupo atrás do muro da escola, do poste, do mundo ...Em qualquer lugar onde as pessoas “faladeiras ” não tinham acesso .Mas com o passar do tempo não fazíamos questão nenhuma em nos esconder, “usando” ao vivo e á cores !

Só que a erva também tinha um preço e custou muitas lágrimas á minha mãe , que ao perceber que alguns objetos de casa estavam sumindo, resolveu sumir para bem longe de mim, colocando uma barreira entre nós .Eu já não tinha vergonha em vender o tênis, o relógio, o rádio! Qualquer coisa que virasse erva.

Eu quase não via você e talvez fosse melhor assim. Até que fui “adotado” por um outro homem que logo de cara me presenteou com um pacotinho miúdo onde se encontrava um pó esbranquiçado .Eu já estava dentro de um abismo e não sabia .Sentia que estava ficando cada vez mais fraco e não tinha forças pra nada .

Abandonei definitivamente a escola e estava angustiado .O meu corpo parecia sem vida, os meus olhos estavam opacos e minha alma se desmanchava em pó .Estava fraco e sem esperança de conquistar aquele FUTURO que um dia havia desejado para mim .Havia me transformado em um menininho perdido , achado por uma galera “poderosa” e por um traficante “maneiro” que me prendeu junto de si .Aquela era a minha nova família e parecíamos “INFELIZES ”para sempre.

Conheci de perto aquele mundo monstruoso : ácidos, cocaína , anfetaminas, cogumelos, heroína , maconha, ópio ...Precisa de mais ? E com eles vieram uma bagagem repleta de : tristeza, solidão, medo, vazio, angústia, raiva ,depressão , desespero e dependência total .Será que isto é vida ? Como alguém pode ser FELIZ se é mais um escravo da droga ? Pai ,que “alegria ”é esta que invade o corpo lhe transformando em uma droga? Só que ela não entra sem ser convidada e eu não soube dizer : NÃO , EU NÃO QUERO . NÃO, EU NÃO PRECISO DE DROGAS PARA SER FELIZ!

Ninguém precisa experimentar para saber que a droga é uma droga .Basta olhar ao seu redor para ver quantas pessoas sofrem as suas conseqüências . Hoje eu sou mais um “MENININHO PERDIDO” que está tentando se encontrar , buscando o caminho de volta ...Talvez você apenas se lastime , como tantas vezes fez, mas eu sou o seu filho e o que você pode fazer por mim? FECHAR os olhos para não ver ? TRANCAR as portas da sua casa e do seu coração para não sentir ? ESCONDER os braços para não estender as mãos ? Quando alguém está perdido, o mundo a sua volta fica no escuro também porque não existe progresso se a humanidade não consegue caminhar em harmonia”.

O pai continuava mudo, ofegante em suas emoções.Os anos foram passando diante de seus olhos como se fosse um filme de terror, suspense ou um romance moderno.Seria ele o culpado ou seriam todos inocentes? Não era um bandido; apenas um pai como tantos outros repleto de manias , teorias e hipocrisias . Nisso o menino deu um soco na porta e com os olhos banhados de saudade, gritou:

“Tome uma atitude, caramba! Acho que ainda não é tarde para que venha me ver.Tomara que não seja tão tarde para que possa me buscar . A minha alma aflita tenta fugir para as ruas escuras da cidade, rondando os becos e as vielas para depois se derramar na sarjeta, implorando por APENAS UM; um cheiro, gole ou um trago! Só que desta vez estou diante do altar do seu coração, suplicando nesta prece silenciosa que me venha me salvar .Pai, me tira deste vazio!”

Silêncio.Quanto tempo esperaria mais? Ali do outro lado da parede estava o seu filho amado.Deveria ser um homem, mas parecia um menino perdido em seus devaneios, na tentativa de ser apenas feliz.

Durante anos se desencontraram um do outro, mas agora seria diferente. Queria lhe dizer que desejava muito ser simplesmente seu pai; no cinema devorando um saco de pipocas, no tapete da sala, no churrasco de domingo, na areia da praia...Nos momentos de tristeza ou de alegria.Pai pra qualquer dia ou noite! Embaixo de sol ou mesmo de chuva.Adoraria ser seu parceiro, seu companheiro ou seu melhor amigo.

Nada mais teria tanta graça como lhe sentir no próprio peito, aconchegando seus sonhos e acalentando seus medos.

Seria um pai repleto de falhas, dúvidas e incertezas, mas com a certeza que faria o impossível para lhe fazer feliz.Para serem felizes, só um pouquinho mais! Então iniciou uma prece comovida:

“Muitos são pais se ontem foram filhos. Filhos revoltados e filhos gananciosos na ira de viver.Jovens silenciados pela impotência de uma sociedade tumultuada e sociável, conduzindo filhos sem pais e pais sem filhos .Porque fui um deles e nunca tinha tempo para estar presente .Hoje sou um pai, como tantos outros que procura o seu filho, sendo que um filho, como tantos outros procura um pai.

Abram os olhos porque não sou o único nesta busca.

Abram os braços porque não sou o único neste desencontro.

Acompanhem-me.Vamos um a um buscar nossos filhos antes que eles se esqueçam que um dia tiveram um pai.Vamos fazer uma ciranda ao redor deste planeta e enlaçar nossas crianças num abraço fraterno .Vamos mostrar o caminho de volta antes que eles se percam no escuro, carentes de direção, diálogo e carinho .Filho, eu estou aqui ”.

De repente empurrou aquela porta que parecia de aço com a força do seu coração, indo ao seu encontro . Agora se olhavam nos olhos, após anos de solidão:

- Pai, por que demorou tanto?

- Eu também estava perdido e somente consegui me encontrar, quando o encontrei.Porque um pai não está inteiro se lhe falta o coração!

- Você pode me ajudar ? Eu preciso de você.- murmurou .

- Precisamos um do outro.

- Pai, fica comigo...

-O amor que eu sinto por você não se explica .Apenas sente...sem sentido.Exala um perfume de criança, um abraço amigo, um colo de Pai ... Não precisa ser especial para senti-lo. Basta ser simples .É o bálsamo de todas as dores, a cura de todas as chagas, o milagre de superar qualquer obstáculo .É muito mais que dividir-se .É dar-se por inteiro.Seja por um momento, por um dia, ou para sempre.Estou aqui para lhe ensinar o que aprendi e aprender com você o que ainda não sei.Temos tempo para recomeçar , porque aquele que ama não exige.Conquista.Não morre .Renasce .Não crítica. Perdoa.Não aniquila .Constrói .Não escraviza, meu filho.Apenas liberta.

Não conseguiram falar mais nada. Os corpos se enlaçaram num abraço infinito, as palavras se misturaram com o choro incontrolável e as almas que pareciam aflitas, selaram a paz.

Nisso um foco de luz entrou por aquela porta e iluminou todos os moveis, os cantos, os corpos, trazendo consigo o renascer de uma nova manhã para que pai e filho pudessem viver juntos uma linda história de amor, coragem e esperança.

Conto classificado no Mapa Cultural de Literatura 2007- fase Municipal