Um Abraço
Não posso dizer o quanto aquele abraço doeu. Doeu, sufocou, machucou, e ao mesmo tempo curou todas as feridas. Entenda, não se tratou de um simples abraço. Foi um golpe de um punhal em brasa, que fere, mas ao tempo cauteriza um corte profundo. Depois de intensa batalha, aquele abraço significou mais do que um tratado de paz.
Para que o leitor entenda melhor o que estou tentando dizer, vou explicar do início.
Marina era minha amiga. Ela chegou na sétima série, como a única aluna nova na sala. Não tinha amigos e não conseguiu se enturmar na primeira semana, pois era frágil e tímida como uma Dormideira, que se fecha quando é tocada ou quando há muito vento. Porém, a Dormideira é uma planta curiosamente peculiar: ela se adapta a qualquer solo e, se você cultivá-la bem – o que não é muito difícil –, dá flores delicadas e bonitas. Marina era uma Dormideira em todos os sentidos, até no que se refere ao sentido literal da palavra. Quando eu dormia em sua casa, chegava a achar que talvez tivesse morrido, tamanho era seu sono e quão lenta e tranquila era sua respiração.
Tornamo-nos amigas num processo de um mês e meio, se não me engano. Acho que senti pena daquela menina sozinha no fundo da sala e me ofereci para fazer dupla com ela num trabalho de História. Foi assim. Passamos a descobrir assuntos em comum e a partir dali conversamos quase todos os dias. Ajudou o fato de que pegávamos o mesmo caminho para ir para casa, nos separando apenas quando cada uma ia para uma rua diferente.
Nossa amizade durou inabalável por algum tempo. As brigas que tínhamos eram sobre coisas triviais, como qual diretor de cinema era o melhor, ou qual personagem de algum livro, qual era o melhor filme, esse tipo de coisa. Até que, no primeiro ano, alguma coisa mudou.
Ah, sim. Foi aquele garoto.
Breno era o típico garoto popular da turma, aquele por quem todas eram apaixonadas. Ele devia ter algum problema com hormônios, sua puberdade havia sido precoce e, portanto, ele parecia mais masculino, mais viril. Acho que era por isso que gostavam dele.
Pra mim, ele era apenas outro babaca com membros desenvolvidos, mas para Marina... Ele era Adônis na terra.
— O que você vê nele, afinal? — cheguei a perguntar um dia.
— O que você não vê nele?! — ela riu, — Sinceramente, Brisa, é impossível que não o ache pelo menos um pouquinho bonito.
— Sendo honesta, ele não me atrai em nada.
— E o que te atrai? Nunca vi você falando de nenhum garoto, deve ter alguém de quem você goste.
Mas não havia. Não naquele momento, pelo menos.
Um dia, aconteceu uma festa. Aniversário de uma garota da nossa turma. Todo mundo foi com sua melhor roupa, e não havia nada de especial em ninguém, mas Marina parecia uma Cinderela. Ela havia desabrochado em seu vestido de alcinha azul. Não fui só eu que percebi, Breno estava lá.
Pouco tempo depois eles começaram a namorar, mas Breno não era o tipo de cara que namorava. Eu tinha muitos amigos meninos e às vezes eles deixavam escapar fofocas uns sobre os outros. Nesse quesito, garotos costumam se achar muito superiores às garotas, mas a verdade é que eles não passam de contadores de vantagem. Meninos são muito burros para conter informações secretas para si mesmos. Eu descobria histórias não muito boas sobre Breno, através daquelas narrativas machistas.
Marina estava como que enfeitiçada pela paixão. Ela se afastou de todo mundo. Seu novo objetivo de vida era cultuar aquele Adônis desengonçado. Eu não estava gostando nem um pouco, mas toda vez que tocava no assunto, ela dizia que eu estava exagerando.
— Você está com ciúmes, Brisa.
— Não estou, sei que nunca vai deixar de ser minha amiga. Mas, Marina, estou te falando, você merece muito mais do que esse cara. Ele não gosta de você.
— Como pode dizer isso? Você não o conhece.
— Ah, é? Me diz, então, alguma vez ele já fez algo por ti? Algo importante, que demonstrasse carinho, orgulho de ter você como namorada. Já?
Ela respondia que sim, mas os exemplos eram fracos e não havia verdade em seus olhos castanhos quando ela os mencionava.
Vê-la abraçada a ele no intervalo me dava raiva e meu coração se apertava no peito. Eu tinha que fazer alguma coisa.
Entenda, caro leitor. Eu havia cultivado a Dormideira, eu devia protegê-la do vento forte.
Certo dia, encontrei-o no canto escondido do corredor quando saí para ir ao banheiro no meio do horário de aula. Ele não me viu, mas eu o vi beijar uma garota que não era a minha melhor amiga. Meu sangue ferveu, na hora não pensei no que ia fazer, apenas fiz. Confrontei-o em flagrante delito, a menina que ele beijava fugiu, mas não era com ela que eu estava preocupada no momento.
— Seu babaca, o que você está fazendo com essa garota, você tem uma namorada, se esqueceu?
— Calma, não é o que você está pensando.
— Ah não, você não estava beijando aquela menina, estava fazendo respiração boca a boca nela!
— Quer saber, eu estava beijando ela sim e você vai fazer o quê? Ir correndo contar para a sua amiguinha?
— Vou, mas vou chutar o seu traseiro antes.
Apesar de grande, ele não era tão forte quanto parecia, nem eu era tão fraca. Mas nossa briga foi interrompida por algum monitor e nós dois acabamos suspensos.
Naquela mesma noite liguei para Marina, ela não me atendeu nas primeiras cinco vezes.
— Oi. — ela disse secamente.
— Já está sabendo? Fui suspensa por causa do seu namoradinho idiota.
— Estou sabendo sim.
Alguns segundos se passaram sem que ela dissesse mais nada.
— Não quer saber o que aconteceu?
— Eu sei o que aconteceu. Por sua causa ele não quer mais saber de mim.
Só então eu percebi que a voz dela estava embargada, como alguém que havia chorado um rio inteiro.
— Como é que é?
— É, Brisa! — ela gritou — Breno terminou comigo por telefone agora de tarde e a culpa é sua! Ele não quis me dizer o que você disse, mas foi o suficiente para ele não me querer mais. Parabéns, você conseguiu, amiga.
E desligou.
Naquele momento, eu fiquei tão irritada, mas tão irritada, que chorei de raiva até pegar no sono.
Estava suspensa por três dias e esses dias foram os mais torturantes de toda a minha vida. Não porque meu pais me encheram o saco por ter arranjado briga no colégio, mas porque não conseguia falar com Marina. E aquela solidão estava me matando. Queria explicar tanta coisa para ela.
Marina mudou-se de colégio, sem me dirigir a palavra uma única vez depois daquele dia. Eu não a procurei, nem supliquei que me ouvisse ou voltasse a falar comigo. Eu tinha meus defeitos, era uma menina fútil e orgulhosa. Mas não vou mentir, não procurá-la me rendeu um sentimento de culpa terrível do qual eu não pude me livrar. Em parte, a culpa realmente era minha, por melhores que houvessem sido as intenções.
Entenda, caro leitor. Marina não era só minha melhor amiga, ela era minha Dormideira. A tímida e frágil Dormideira que se encolhe quanto tocam suas folhas. E eu havia tocado em uma ferida.
Marina nunca se sentira bonita e amada. Ela suplicava por amor a cada pessoa que passava por sua vida. Breno havia sido sua primeira paixão, seu primeiro namorado, o primeiro cara que havia olhado para ela. Por isso, ela se entregara a ele como se estivesse agarrando sua última chance. Mal sabia Marina que havia alguém no mundo a quem ela não precisaria suplicar amor, alguém que lhe daria amor de graça e com muito prazer.
Esse alguém deveria ter sido eu.
Mas os anos passaram e não nos encontramos mais.
Por isso, quando a vi na faculdade, sentada na área verde do Centro de Artes e Comunicações, com um livro aberto e expressão solene, curiosa, foi como ver minha linda Dormideira em flor. Meu coração saltou no peito, e eu queria apenas correr para ela e tocá-la, mas o medo de fazê-la se fechar para mim apareceu novamente.
Eu me aproximei vagarosamente, temerosa, mal acreditando em meus próprios olhos, temendo que aquela imagem fosse uma ilusão.
— Marina? — arrisquei.
A garota levantou os olhos para mim. Eu estava diferente, é claro. Cabelos longos, alta, usando lentes de contato ao invés de óculos. Mas não estava irreconhecível, no fundo eu era a mesma de antes.
Ela ficou sem reação num primeiro momento, mas então, seu sorriso iluminando-se para mim foi como uma redenção divina.
— Oi, amiga. — disse ela, e eu senti lágrimas se formarem no canto dos meus olhos.
Ela se levantou e veio em minha direção com os braços abertos. Abraçou-me forte, como se desejasse ter feito aquilo durante um bom tempo.
Agarrei-me a ela, sentindo o cheiro de seus cabelos e sua pele macia em contato com a minha.
Segurava-me com firmeza e foi aí que eu percebi, Marina estava confiante e forte. Não havia resquícios de sua ingênua fragilidade e timidez, os traços da minha Dormideira haviam desaparecido, para dar lugar a uma linda Bulbine, delicada, porém resistente, que não precisava de ninguém para proteger-lhe do vento forte, ou da chuva, ou do frio.
O que havia acontecido enquanto estivéramos separadas?
— A gente tem muito o que colocar em dia, não? — ela riu, e seu riso brincou em minha orelha.
Não posso dizer o quanto aquele abraço doeu. Doeu, sufocou, machucou, e ao mesmo tempo curou todas as feridas.
Entenda, não se tratou de um simples abraço. Era um reencontro de almas e, sobretudo, um perdão pelas coisas não ditas.
Às vezes é preciso seguir caminhos separados e deixar que as pessoas evoluam por si mesmas. Tentar proteger Marina sempre foi o meu erro, porque ela precisava cair para aprender a se reerguer. Agora, com ela aqui em meus braços novamente, percebi que não precisava de proteção e que eu podia amá-la sem medo de que ela se fechasse novamente.
E pela primeira vez na vida eu entendi o significado das palavras: onde há amor, há braços.