A Canja - Helena Antoun

Naquela manhã de outono, Iracema acordou, e percebeu na cama, ao seu lado, o corpo inerte e frio de seu marido que morrera durante a noite. Iracema lembrou que, na madrugada, sentira Osvaldo, se remexer muito durante o sono, mas acreditou ser mais um dos pesadelos que seu marido costumava ter, onde combatia seres marinhos que invadiam a cidade em busca dos vasos de cerâmica que as mulheres do povoado fabricavam. “Provavelmente o coração do marido não suportara o combate noturno”, pensou Iracema, enquanto, de novo, tentava se acordar, na esperança de ter sido apenas um sonho ruim. Em meio às lágrimas e aos lamentos, repetidos como ladainha, Cema, como Osvaldo costumava chamá-la, tratou de vestir uma roupa mais decente no marido, penteou e perfumou os cabelos do morto, se aprontou e saiu, na manhã fria, em busca do farmacêutico, que era uma espécie de médico de tudo, para descobrir se a causa da morte de fato havia sido a guerra aquática, jurando que urinaria e defecaria diariamente no mar, para vingar a morte de seu marido, até que todos os oceanos se transformassem em fossas abertas dos continentes, e que todas as criaturas oceânicas se reduzissem a um gigantesco Iceberg de merda.

Alcindo, ao ver o corpo de Osvaldo lamentou em voz alta: - “O pobre coitado deve ter tentado respirar”. E mostrou a Iracema a coloração extremamente arroxeada para o pouco tempo de morto, mas a mulher via a cor como um sinal claro de afogamento nas profundezas marítimas. Os olhos arregalados e saltados, que para Iracema eram um forte indício de que o marido tentara se transformar em alguma espécie de peixe durante o sono – eram na verdade sinais incontestáveis da asfixia. Alcindo pôs-se, então, a examinar meticulosamente o corpo do amigo, enquanto lembrava das últimas visitas que Osvaldo fizera à farmácia em busca de pedra ume para curar suas aftas. Verificou que o interior da boca de Osvaldo se encontrava entumescido pelo excesso de sangue ali agrupado, e que seus dentes estavam, quase todos, na iminência de se soltarem. Mais adiante, conforme introduzia os dedos pela garganta do amigo, Alcindo encontrou, na laringe, a causa mortis do infeliz: um molar. Osvaldo havia se asfixiado com seu próprio dente que, através da raiz pontuda, se prendera à laringe, provocando inchação e fechamento, causando a axfixia.

Alcindo, enquanto escrevia o laudo de óbito, explicava à Iracema que Osvaldo vinha sofrendo, talvez, de algum mal que lhe tornava frouxos os dentes, e que por essa razão, o dente se subtraíra durante o sono, causando a morte do amigo. Iracema enquanto ouvia, chorava e preparava um café com broa para o médico. Pensava no quanto devia ter sido difícil para o marido, combater os seres aquáticos e ainda se livrar do dente que se acovardara e insistia em abandonar a batalha. Assim que Alcindo saiu, Iracema correu ao espelho do banheiro para verificar seus próprios dentes que também andavam frouxos querendo abandonar seus lugares. Desde então, teve medo de comer qualquer coisa mastigável.

O funeral transcorrera normalmente. O café com sanduíches de mortadela (era costume serví-los em funerais) foram servidos na casa da vizinha Cléo. Por algum motivo os sanduíches quase não foram tocados, exceto pelas crianças. As conversas giravam em torno das batalhas noturnas de Osvaldo, que Iracema não se conteve em calar por acreditar serem a causa de tudo – e do outono dos dentes do falecido.

À noite, Iracema não conseguia dormir, temia que seus dentes resolvessem desertar durante o sono, ou que os seres marinhos a procurassem para continuar a batalha de onde seu marido parara. Foi para a frente da casa olhar a noite, e procurar por algum acontecimento noturno que ela desconhecesse, e que pudesse servir de pista para a descoberta desse mal dentário que invadira sua casa. Reparou que todas as casas vizinhas mantinham, algumas luzes acesas. O calor era grande e Iracema, ainda na sua dieta líquida, preparou um suco de graviola, sentou-se no banco de pedra da calçada e, enquanto tomava o alimento, observava intrigada um certo movimento noturno nas casa vizinhas e de que nunca se dera conta.

Quando amanheceu, preparou um café forte para conseguir ficar de pé, depois da noite insone, e tomou-o com algumas sobras do pão do funeral molhados no café até se tornarem-se pasta.

Iracema dava aulas de soma e subtração na escola do povoado. Neste dia, enquanto caminhava para a escola, pensava no que seria da cidade sem a proteção de Osvaldo nas guerras molhadas de todas as noites. À tarde, trabalhou como de costume nos vasos de cerâmica, e tratou de guardá-los no porão da casa onde Osvaldo costumava escondê-los dos seres abissais.

Quando a noite chegava, sentia-se fraca por falta de sono e pela alimentação precária. Resolveu fazer uma canja de galinha bem cozida, tomou alguns pratos da sopa e sentiu-se refeita, Até planos de proteção da cidade fizera. Durante a vigília noturna, pode contar com algumas companhias da vizinhança, que alegavam o calor como impedimento de seus sonos. Com elas compartilhou teorias acerca do prenúncio de seu marido. Os vizinhos confessaram que não dormiam desde o funeral e que não comiam nada que exigissem o uso dos dentes, pois, assim como Iracema, todos sofriam também da ameaça do abandono dentário. As noites que se seguiram foram, cada vez mais, povoadas pela vizinhança. Iracema havia ensinado a todos o milagre da canja. Desde que começara a consumí-la, seus dentes vinham se mantendo estáveis, e sua fadiga, devida às noites insones, havia desaparecido. Durante às noites, discutiam formas de proteger os artefatos de cerâmica que era o meio de vida da cidade, e de contornar os problemas de alimentação e sono devidos à revolução dentária. Todos podiam cochilar um pouco através de revezamento, e sob a vigilância cuidadosa dos que ficavam acordados. Todos da cidade já participavam das reuniões, que agora eram feitas de modo organizado. O bêbado Euclides tornou-se uma espécie de lider do grupo, por ser muito experiente nos três mais importantes assuntos: vigília na madrugada, dieta líquida, e era, desde sempre, completamente desdentado. Jânio, o açougueiro, desde que a cidade se dedicou ao combate à invasão marinha, e à fuga dos caninos molares e incisivos – passou a comercializar somente galinhas. Três vezes por semana, um barco, vindo da granja da capital, atracava no porto trazendo caixotes e mais caixotes das aves. As galinhas vinham vivas, e só eram mortas um pouco antes de se tornarem canja.

Numa noite fria de junho, quando chegaram à praça para a costumeira reunião, os Alves, muito assustados fizeram a declaração: ambos haviam perdido dois dentes cada um. Envergonhados exibiram os dentes a todos. Os dentes passaram de mão em mão, e foram minuciosamente provados e cheirados, na expectativa de se encontrar ali algum resíduo de maresia.

Essa situação, junto com o fato de muitos passarem o dia cochilando no trabalho, e as vezes até mesmo no banho, correndo o risco de se afogarem – deixou evidente a importância de se fazer algo mais decisivo para evitar mal maior. Foi durante um discurso inflamado de Euclides – que segurava em suas mãos, de punho cerrado, os quatro dentes dos Alves – que a costureira Janete reparou nas palavras do orador quando ele dizia: “... para que todos possam usufruir do sono tranquilo que eu tenho, durante o dia, e que as galinhas têm durante a noite!”. Aos berros, enquanto todos aplaudiam, Janete pedia a palavra dizendo ter encontrado uma ‘meia’ solução para o problema. Janeta mostrou que, tanto Euclides, quanto as galinhas, não possuíam dentes, e que por isso podiam dormir tranquilos. Que se todos extraíssem os dentes naturais, não se preocupariam mais com a morte pelo dente. A princípio, foi um alvoroço só. Todos queriam falar ao mesmo tempo. Ninguém se conformava com a idéia de nunca mais recuperarem seus dentes. Aos poucos a idéia foi tomando corpo e, antes que o dia amanhecesse, já discutiam modelos de dentadura, e potes de cerâmica com o nome gravado para guardá-las durante a noite, e não confundí-las pela manhã.

As entregas de galinhas eram mais assíduas. A canja tornou-se refeição obrigatória de todos. Os moleques se especializavam no ofício de matar e limpar as galinhas. Mais da metade da população aguardava suas dentaduras, o restante ainda tirava o molde da arcada para que fossem encomendadas as chapas. Os dentes extraídos foram todos guardados num grande vaso de cerâmica com o nome da cidade e circulado com pinturas de galinhas de todas as cores. O vaso era guardado na igreja para que fossem protegidos e vigiados pela providência divina. As vigílias noturnas continuavam, só que agora em turnos, e com a finalidade única de proteger a cidade da invasão dos seres das profundezas do mar. Elias, o sapateiro, inventou um preparado para tratamento das penas das galinhas à base de ervas e, em pouco tempo, o povoado passou a fabricar travesseiros, com vendas equiparáveis à dos vasos.

Na janta, Iracema tomou sua canja como de costume, se preparou para dormir, tirou as dentaduras colocou-as no copo de cerâmica com seu nome gravado, apagou a luz do abajur e deitou-se. Durante as orações, pediu ao marido que a ajudasse no pesadelo da batalha noturna pois fora a escalada da noite para sonhar com guerra molhada e lutar em defesa da cidade. Sempre que era sua vez de sonhar, pedia ajuda a Osvaldo pois nunca se dera muito bem com as coisas do mar.

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Helena Antoun
Enviado por Helena Antoun em 22/07/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T574537