Da psicose
Ela levanta o mastro, e grita: "liberdade para dentro da cabeça"!
Sentia-se mais uma vez sufocada e pedia a amiga que a lembrasse de suas queixas, das grosserias e do quanto ele a roubava de si mesma. Mais uma vez não estava suportando, já em seu limite, a ponto de o mandar para fora de sua vida. Lembrou-se do quanto ele a diminuía frente às pessoas... Puxou da memória uma certa vez em que estava numa posição de destaque na formatura de seu filho, a ponto de discursar, e ele a humilhou diante de todos os seus colegas. Agora, até de subordinados, o que foi a gota d'água. Humilhou também o pobre porteiro, necessidade de quem se sente inferior [ele].
Ela o mandou embora, ficou bem, sentiu-se livre em sua própria casa. Dona de seus atos e de sua hora. A amiga lhe pergunta se está certa dessa decisão, pois em outras vezes a tomou, e além de não sustentar a evitou como um cão que se isola para morrer, de tanto chorar. Ela responde categoricamente que só se fosse psicopata para querer voltar ao relacionamento e/ou evitá-la, pois sentia-se outra. Planejava até uma dieta!
Chamou-o de cretino, monstro, e disse que a vontade era de lhe bater até torná-lo uma ervilha. Tinha vontade de gritar tanto até sair de si, pois ele, grosseirão, conseguia estragar tudo. Disse que ele queria acabar com ela de várias maneiras. Tudo se deu numa festa em seu trabalho onde ela comandava. Sentindo-se livre, afirma aos quatro ventos: Não quero mais! Não o quero mais!
E ele faz a mala e parte levando seus objetos! Seu dia rende, prepara os seus artigos, até então atrasados, sai para uma caminhada, vai ao mercado comprar seus alimentos, e ao retornar, radiante e plena de liberdade, liga para a amiga, conversam descontraidamente, e em seguida diz que vai assistir a sua série preferida, ou dormir, aliás, fazer o que quiser... Tão feliz que nem cabe em si!
Ainda preocupada, pois já havia presenciado cenas semelhantes, a amiga a questiona a todo momento sobre seu bem estar. Se não está sofrendo de solidão, se está segura do que fez, mas ela firme em seu propósito diz que sim, que agora pode ir e vir. Então, como pediu que o fizesse, a amiga reforça os defeitos dele, os quais, ela contou e outros presenciou. Ela diz: isso mesmo, eu pedi, não pedi!? Sem saber que a amiga reforçava ainda mais porque estava engasgada com o traste. Contudo, não sabia como fazer para lhe contar, pois o assunto era de extrema delicadeza, e necessitava de um momento propício.
Falavam-se muitas vezes ao dia, se preocupavam uma com a outra,
mais até que seus próprios filhos e parentes. Afinal, eram amigas!
Ele faz uma viagem, na qual, ela iria acompanhá-lo se tivessem juntos. Passa a publicar fotos e roteiro, e ela a seguir seus passos. Lembra-se dos caminhos pelos quais percorreram juntos numa viagem semelhante, o que comeram e tudo mais que uma boa viagem deixa marcado em nós. Ele a conhece, e sabe como provocá-la...
A amiga percebe que já titubeia, a dor de cotovelo toma conta de todos os seus sentidos. Daí em diante ele toma o pódio e passa a ser o assunto central dela. Não disse, mas era nítido que gostaria ter ido. Seu orgulho e autoestima se inflama. E todos o gestos dele são tomados como se esperassem uma resposta dela. A qual, assegura que não dará! Ainda não admite uma volta, dizendo ser somente uma inquietação por saber que ele é totalmente contra postagens e exibicionismo, e se o faz, no caso, é para incitá-la. A partir daí, ele já é dono da situação, embora ela não tenha se dado conta.
Talvez, ainda não entendesse a dinâmica, ou, quem sabe, estava a espera de um motivo genuíno para admitir a psicopatia e dependência psíquica-químico-emocional daquele ser também doentio. O motivo veio em cheio, como um balde de água gelada nos chavelhos, que não de agora, mas de há muito eriçados.
E como outrora, fechou-se em sua concha para lamentar sua liberdade... Suas horas tão cheias de si transformam-se num labirinto de ensurdecedor silêncio! Chora, feito bicho a se isolar à beira da morte. Logo, percebe que perdeu o controle da situação, e coloca-se como a abandonada. A ira transforma-se em autopiedade, vira-se contra qualquer um, sobretudo, contra si mesma, menos para ele, que a partir de então, passa a ser lembrado pelos "bons" e falsos momentos que viveram.
Falsos! Já que o luto a que ela se entrega não faz parte dos planos dele, pois o indivíduo já desfila com outra, isso, pouco tempo após findarem a relação, ou antes, quem sabe...
Tal e qual o grande poeta asseverou:
"Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."
16/08 - 21h