Caminho da lenha

Manesim acordou cedo como de costume. Sabia que naquele dia sairia com o pai. Iria até a mata de maiquinique em busca de lenha. Três léguas. Faziam isso toda semana. Antigamente tinha lenha por aqui, mas agora só pra os lados da Coroa. A seca dava forte, meses não chovia e a paisagem amarelada dava um ar cansado à vista. Às seis horas, ainda com a gritaria da manhã, tomou seu café com broa e manteiga, dois copos cheios de café, quase derramando. Depois sentou-se no toco de tapicuru á beira da casa e esperou seu pai se preparar .

Os olhinhos se perdiam na mansidão das terras. Não conhecia outro lugar, só a fazenda Mangerona. Muitas vezes se pergunta, sem contar pra ninguém, se existia algo alem da Serra da Coroa. Nunca havia ido mais longe.

O pai chegou olhou rápido e disse:

-Vam’bora!

Os dois foram andando, um do lado do outro, o silêncio dava força ao vento quente. Tinha passos esmorecidos mas com decisão.

Três léguas, duas horas, ninguém falava. O pai às vezes acendia um cigarro, tossia, olhava com impaciência. Sentia vergonha do silêncio do pai, queria falar algo, ensaiava. As palavras vinham à boca, na garganta. Julgava desimportantes e desistia. Fazia gesto forte como o pai no andar. Queria ser sério também. Fazia-se homem para o pai ver. O pai não percebia e ele desmontava de novo em sua meninice. Sentia cansado, as pernas doíam e a asma que nunca sarou direito atormentava sua andança. Mas não dizia nada, imaginava que seu pai não gosta de homem mole, homem fraco, de menino fraco. Pelo jeito do pai, sim, pelo jeito do pai, imagina tudo isso.

No açude de Brumado, sentia sede. Sempre paravam por ali. Descansavam um pouco e bebiam água, e muitas vezes ali o pai pergunta se queria tomar banho e ele sempre dizia sim, porque nessa hora seu pai o jogava na água . Sentia bem, sentia feliz, batia perna, batia braços e tomava mais água.

Enquanto isso seu pai sentava na pedra preta à sombra da cocheira de sal. Mais uma vez fazia aquele jeito distante e apagado, era como se tudo no mundo desaparecesse. Manesim ficava sem ação, dava um nó na garganta. Queria saber o que se passava com seu pai. Por que ficava tão quieto quando acendia o cigarro. Os olhos brilhavam mais que de costume. Sentia impotente, queria saber fazer perguntas. Mas não sabia se podia perguntar coisas assim . Seu pai era tão misterioso, não falava da sua vida, do seu trabalho, da sua mãe. Seu pai era um homem adivinhado, descoberto ou inventado. E a cada viagem ele inventava como era seu pai. Das coisas que ele gostava e o que não gostava também.

Depois de bastante tempo na água. Com os dedinhos engelhados, saiu de queixo batendo e acanhado aproximou da cocheira e disse:

- pai, posso perguntar uma coisa pro senhor?

- O que?

- O que senhor pensa quando fica assim, desse jeito, quieto e olhando pra longe?

Olhou com surpresa pra Manesim e um sorriso hesitante apareceu no rostou. O menino ficou bem. Percebeu que o pai ouviu sua pergunta.

- Por quê ta perguntando isso, menino?

- Nada pai, só pensei.

- A gente quando cresce da conta de coisas que quando criança a gente não vê. É nisso que penso.

- Que coisa, pai?

O silêncio voltou a encontrar a seriedade do pai , não sentiu vontade de falar nada pro menino. "Cada coisa", pensou em voz alta. Abaixou, pegou o embornal e colocou no ombro.

Sentiu desrespeitado. "menino saído" – pensou. Mas um orgulho veio em sua face. Viu que seu menino estava crescendo, deixando de ser criança.

O resto do caminho o silêncio voltou a ser importante. Pela expressão no rosto do pai sentia que não podia perguntar mais nada, ficaria quieto. Andava mais solto e sentia agora importante. Teve coragem de perguntar uma coisa séria pra seu pai. Mas a frase que o pai falou ficou forte em cabeça. "O que meu pai vê que eu não vejo?"

Impressionou bastante. Disfarçadamente esfregava os olhos, tentava abrir mais, forcava um pouco a vista. Se frustrava um pouco. Queria enxergar. "Que acontece com os olhos dos adultos que passa a enxergar mais? ". "Será que a mãe também enxerga essas coisas como o pai?". "E porque ela não fica pensativa como ele ?" Por instantes teve medo de crescer, de ficar triste, de ter que ficar horas parado olhando essas coisas estranhas.

Chegando à Mata, andaram ao redor de algumas árvores caídas, cortaram algumas toras, procuram cipo pra amarrar. Comeram frutas e Manesim ria alto enquanto olhava os sanhaços embaralhados nas árvores.

- Pai, posso fazer mais uma pergunta?

Quieto o pai estava. Sem muita decisão acenou a cabeça que sim.

- o que senhor vê que eu não vejo?

Olhou no olho do menino, olhou com raiva pela insistência do menino. Ficou nervoso , não sabia de verdade como explicar, sabia da pergunta. Entendeu a pergunta. Pensou em ignorar, ralhar como fazia sempre, mas sentiu necessidade de falar algo que mostrasse seu interesse e seu entendimento. Olhou Manesim no seu tamanho, pensou na idade dele. Durante alguns momentos ignorou sua presença. Continuou fazendo força pra amarrar a lenha. De tanto apertar o cipó estourou e todo o feixe se esparramou.

Não falou o palavrão de costume, mas mesmo assim o menino se assustou, esperava um palavrão, um xingo. Não veio nada, tudo ficou parado, só se ouviam na mata os pássaros e o vento empurrando as árvores.

Teve medo, e quando já estava desistindo da pergunta, o pai olha pra ele de um jeito muito diferente, os olhos amolecidos e a brabeza saiu por um momento de seu rosto.

- Com tempo, Manesim, a gente vai ficando forte e as coisas vão aparecendo. Até outro dia você não me perguntava essas coisas e agora você pergunta. Isso é uma coisa que antes você não via e agora você vê. Vejo que tá ficando homem.

- Mas você fica triste, pai.

- Quando fico triste olhando pra longe como você falou é porque estou tentando enxergar. Só quando a gente fica quieto que vemos essas coisas.

- Pai, às vezes fico quieto também!

O pai riu e não teve mais nenhuma palavra durante todo caminho de volta . Manesim sempre na frente, com o feixe de lenha na cabeça, marchava forte e cheio de glória, pois agora via coisas como o seu pai.

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Andrade de Campos
Enviado por Andrade de Campos em 16/08/2016
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