De Pai para Filho
Eu ainda me lembro do dia que você nasceu...Era a grande final do campeonato de truco e aquela rodada de cerveja seria por minha conta.Ajeitei o charuto no canto da boca com os olhos vidrados nas cartas .Tava no papo!
Foi quando de repente alguém gritou o meu nome avisando que um moleque me aguardava na entrada do boteco.
Que atrevimento! Até as pedras sabiam que eu não admitia que me atrapalhassem no jogo, principalmente na Grande Final.
Nem pisquei, mandando que entrasse logo.
Nisso colocou um bilhetinho sobre a mesa onde pude decifrar as letras miúdas:
- Nasceu.- estava escrito.
Você nasceu.Foi assim que veio na minha cabeça a lembrança de sua mãe arrumando uma sacola de viagem. Mulheres! Sempre dispostas a arrumar confusão.Mas desta vez parecia diferente.
Não foi para a casa da mamãe, como de costume. Foi para a Maternidade.Continuei em silêncio esperando o momento certo de comemorar;
- Um, dois, três, truco! - gritei pulando em cima da mesa numa felicidade sem fim.
Agora a vitória estava completa e num orgulho de pai fechei o boteco pagando bebida para todo mundo.Só sei que ao clarear o dia passei na banca do camelô pedindo que separasse a camisa do timão porque o meu filho tinha nascido e precisava agradar a patroa .
Passei em casa colocando o meu melhor terno num assobio desafinado.Mais que depressa levantei o colchão e lá estava todas as economias guardadas.Que mulher!
Às vezes varava a noite na máquina de costura e nunca deixou que nos faltasse nada.Nem mesmo minhas frutas preferidas que eu gostava de enfeitar a mesa no churrasco de domingo.
Quando entrei no quarto da maternidade suava feito bica.Nos encaramos por um minuto apenas e ela abaixou os olhos com você apertadinho nos braços.Como era miúdo! Se soubesse, juro que esperaria mais um pouco para lhe conhecer porque não tinha nada em você que parecesse comigo.
Eu e sua mãe não tínhamos assunto.Acho que só conseguia conversar com as panelas e com elas tinha uma amizade antiga.Talvez fosse uma questão de afinidade.
Andei pelo corredor pensando que eu não tinha muito que fazer por ali, porque você só queria mamar.Então resolvi sumir por um tempo.Aliás, um bom tempo.
Foi a melhor época da minha vida, sem compromisso com ninguém. Dormia nas mesas dos botecos, acordando sempre com uma mulher diferente.
Não sei se você me entende, mas homens são homens e gostam de aventuras, mas nada que significasse alguma coisa séria para mim.
Numa noite de muito azar, perdi tudo o que tinha no jogo.Fiquei desgostoso, chateado e pensativo.Era hora de voltar para casa!
Não tinha idéia do tempo que havia ficado longe de você.
Abri o portão devagar, entrando na pontinha dos pés.O varal estava repleto de fraldas branquinhas e um pirralho corria pela grama, vestido com a camisa do timão.
Senti dentro do meu peito que era você.
Ali estava o meu menino, com o cabelo, a boca e o nariz parecido comigo.Fiquei feliz como que se acabasse de nascer e na verdade chorei de emoção.
Sua mãe me encarou como antes e novamente abaixou os olhos.Que alívio! Nada tinha mudado e então percebi que podia ficar.
Se não tivesse contente, logo arrumaria a sacola de viagem indo embora pra casa da mamãe.Mas não foi e nem me perguntou o motivo daquele sumiço repentino.Nunca falamos sobre o assunto e apenas trocávamos olhares.
Você não se fez de difícil procurando por minhas mãos e pedindo um agrado.Não era homem de agrado!
Quando queria lhe deixar contente trazia uma bala no bolso da calça; era o meu jeito de lhe dizer muitas coisas.Talvez que me perdoasse por ter sido um pai ausente e cheio de compromissos na rua.Esse negócio de carinho era pura “boiolagem” e não queria que você virasse um fresco.
Estávamos cada vez mais parecidos, só que você tinha os olhos castanhos e eu, avermelhados.
Acho que para me afrontar, sua mãe deixou um jornal em cima da cama, do lado do travesseiro, com uma notícia de primeira página sobre um vírus sei lá o quê que estava matando sei lá como.Era meados de 1981 e aquilo não me disse nada.Nem perdi tempo em ler tamanha provocação.Parecia que tava desejando a minha morte!
Mas ao chegar no boteco vieram com o mesmo assunto, dizendo que uma peste gay estava acabando com toda a raça.
Fizemos piadinhas picantes, querendo muito que aquele castigo viesse do céu e colocasse um fim naqueles desvirtuados.
Quem não gostou muito da nossa farra foi um loiro aguado que tinha um filho meio suspeito, com o pé na jaca.
Na hora me lembrei de você, confiante em sua masculinidade.O pouco tempo que ficava em casa podia observar suas brincadeiras com a molecada da rua; tinha um carrinho de rolimã, bolinhas de gude e apetrechos de macho.
Então para estimular suas energias levei de presente uma “ revistinha porreta” .Se não sabia ler, pelo menos olharia as fotos.E que fotos!
Nos trancamos no quarto e eu lhe ofereci o presente, numa risada maliciosa.Conforme ia folheando as páginas, você corava de vergonha.
A vida era assim e eu deveria lhe ensinar o caminho da felicidade.
Era um dever de pai e senti muito orgulho por isto.Estava crescendo rápido e precisava mostrar serviço.Tanto eu, como você.O melhor ainda estava por vir e era apenas uma questão de tempo.
Quando vi que suas pernas se espicharam feito um bambu, lhe chamei para perto de mim, reparando nos fiapinhos que apareciam sobre os lábios.Era o momento certo.
Mandei sua mãe separar sua melhor roupa porque a noite seria longa.
Eu andava na frente e você bem atrás.Não abria a boca, com medo de me desagradar.
O jogo já tinha começado e os companheiros não perceberam a nossa presença.
Puxei uma cadeira ordenando que ficasse ali sentado e fui até o balcão cochichando no ouvido de uma mulher elegantemente vestida com um par de tamancos vermelhos.
Enfiei uma nota enrolada dentro do seu decote e sumi novamente, lhe proporcionando a sua primeira noite de Amor.
Você chegou em casa um pouco depois de mim e não parecia feliz . Preparou um copo de leite quente e sem olhar nos meus olhos, adormeceu sobre a mesa.
Já era um homem.Foi desta maneira que lhe conduzi aos prazeres do mundo, tentando lhe salvar da peste gay.
Poderia morrer de cirrose, de tanto beber com mulheres boazudas, mas com certeza não morreria com aquela doença horrível que as pessoas já chamavam por AIDS. E quantos não se foram!
Era o assunto mais comentado no momento; só que estávamos protegidos porque éramos homens. Outras noites vieram e não precisava mais de mim para lhe fazer companhia.
Parou de estudar passando horas na rua, fazendo sei lá o quê!
Sua mãe continuava falando com as panelas e às vezes chorava com elas.Nunca conseguiu compreender o universo masculino e por isto parecia muito aborrecida.
Você era de poucas palavras, mas de muita ação e comentavam nos botecos que se tratava de um cara “da pá virada”, igual a mim.
Tinha sua própria turma e alguns eram filhos dos companheiros de truco, como que se fossemos uma grande família.
Durante um jogo importante ouvi um falatório na mesa ao lado que me intrigou.Um velho dizia que achava importante o diálogo com os filhos.O seu moleque mais danado havia lhe perguntado sobre camisinha e então ele começou a lhe explicar tudo sobre sexo, numa conversa franca e aberta.
Quanta tolice!Você aprendeu com aulas práticas e deveria ter se doutorado no assunto porque era freguês de carteirinha da boate mais famosa da vila. E aquela tal de camisinha era história para quem não queria encarar “o biscoito de perto”.
Não sei se você se lembra, mas era muito determinado em suas atitudes e não aceitava ser contrariado, quebrando tudo em casa com um pontapé certeiro.Eu tentava lhe entender, pois éramos homens e pensávamos iguais.A culpada de tanta ira decerto era sua mãe que lhe cobria de chateações, querendo xeretar sobre toda a sua vida.
Eu achava bobagem brigar com você por causa da escola.De repente dava uma sorte no jogo do bicho e pronto, se arrumava na vida! Pagava todas as contas atrasadas, enchia a geladeira de comida e construía um puxadinho no quintal pro churrasco do timão.
Somente eu lhe compreendia e deixei que fosse feliz.
Numa noite estava um pouco indisposto e resolvi chegar mais cedo em casa.Pelo vão da porta pude perceber o seu corpo escorrendo até o assoalho com os olhos pairados no teto e senti que alguma coisa estava errada.
Aquilo não era bebedeira.Antes fosse um porre.
Preferia que bebesse como eu mesmo lhe ensinei, mas você não aprendeu e foi procurar outras maneiras de ficar ligado.
A bebida serviu como uma porta aberta para a droga e naquele momento você deixou de ser o meu filho para se transformar num desconhecido para mim.Talvez se eu me aproximasse...Talvez se eu lhe prendesse nos braços como deveria ter feito na maternidade...Porém não consegui lhe falar nada e o seu rosto mórbido, os lábios trêmulos e o corpo frágil me fizeram chorar!
Quase que lhe chamei pelo nome, estendendo-lhe as mãos.Era o meu filhinho perdido no escuro, carente de diálogo, carinho e direção.
Outras noites vieram e você não escondia mais o vício de ninguém, vendendo o tênis, o jeans e até o relógio da parede.Depois apareceu com uma televisão nova, vinda não sei donde e colocou na estante da sala. Nem assim sua mãe ficou feliz.
Acho que sabia que era por pouco tempo; um dia ou dois.
De repente chegou cabisbaixo e percebi que tinha algum problema. Precisava de dinheiro para pagar uma conta.Encarei sua mãe e ela abaixou os olhos.
Você já não era mais o mesmo homem disposto e qualquer gripe lhe derrubava na cama.
Nisso eu ficava horas lendo sobre esportes, política e até mesmo sobre horóscopo, menos sobre AIDS, uma doença fatal que já havia levado consigo inúmeros desconhecidos.
Mas não era problema meu.Você gostava de mulheres e de dormir com elas. Se ele era drogado, nunca me contou.Melhor assim.E no meu íntimo não queria nem pensar que aquela dor poderia ser nossa.
A AIDS estava longe do nosso mundo, até que fiquei sabendo sobre a morte de um conhecido e depois de outro.Era uma doença traiçoeira porque me enganou por muito tempo ao pensar que morava distante de nós .Eu poderia ter me aproximado querendo saber sobre o que fazia nos muros e nos becos da cidade, mas acho que tinha medo.
Um tal de Cazuza morreu.Sua mãe resmungou alguma coisa com as panelas, porém ele nem era da nossa família.
O tempo foi passando e você estava cada vez mais estranho, magro e cheio de olheiras. Deveria ser as mulheres, a noitada e os amigos.
Quase não comia; estava pálido e sem vida.Nos encontramos no corredor de casa e me assustei com vontade de lhe encarar um pouco mais.Tossia muito, enrolado num cobertor nas tardes de verão.Talvez fosse gripe.
Fiquei preocupado e fui lhe espiar.Gemia de frio, de dor e de medo.
Acho que você se lembra da noite que foi levado para um hospital, ao som de uma sirene desesperadora que calou a voz de sua mãe num soluço salgado.Foi passando pelas ruas da cidade, contornando os becos, os botecos, os muros e até mesmo a boate.
Era a final de um campeonato de truco e eu não podia faltar.Seria a grande chance da vitória e se assim fosse, fechariam o boteco até o amanhecer.
Foi quando gritaram o meu nome avisando que um moleque me esperava com um recado amassado entre os dedos.Nisso jogou o bilhete no meio da mesa;
- Está morrendo.- estava escrito.
Não, não poderia ser você.As lágrimas foram se misturando com as cartas e o meu peito doía muito.Era o meu menino e qualquer companheiro ali presente não compreenderia tanta tristeza.
As horas foram passando diante dos meus olhos feito um filme em preto e branco. Coloquei o charuto no canto da boca e sai em silêncio no meio do jogo.
Não quis levar um presente para o hospital.A minha presença seria o melhor de todos.Corri pelas ruas querendo ganhar tempo.Tínhamos muito que conversar! Falaria sobre sexo, drogas e principalmente sobre Amor.Falaríamos sobre o mundo; sobre vida e até AIDS ... Só precisava de mais um minuto; um pouquinho de tempo, uma chance para lhe renascer com um beijo na testa.
Atravessei a portaria e as muralhas dos meus preconceitos, indo direto ao encontro do seu coração.Você estava com os olhos cerrados, numa prece final.
Sua mãe me encarou e eu abaixei o olhar.Desta vez não conversava com as panelas, murmurando uma ladainha misteriosa.Era o meu menino, com cabelo, a boca, o nariz e o vermelhão dos olhos.
Ajoelhei-me do seu lado e lhe chamei de filho, começando ali a nossa conversa e de homem para homem fiz um carinho tímido para depois lhe abraçar junto ao peito como deveria ter feito na primeira vez que nos conhecemos, lá na maternidade.
Quando percebi estava no meu colo e renascemos naquele instante.
- Pai, ô pai ...Por que você demorou tanto? Fica comigo ...Só um pouco mais!
Na verdade eu havia demorado muito para perceber a minha omissão e com certeza estaria sempre ao seu lado, lhe apoiando se tropeçasse, lhe protegendo se sentisse medo.
Não me importava se era uma hepatite, dermatite ou apendicite.
Estaríamos juntos, lutando pela vida.E acho que você confiou em mim, pois abriu os olhos e sorriu.Talvez você não saiba, mas aquele dia sua mãe me encarou como que se encara um homem de verdade, segurou a minha mão e nos transformando numa família.
Chamei o médico no canto do quarto, pedindo que me explicasse tudo sobre a AIDS.
Para superar qualquer preconceito deveríamos nos esclarecer, deixando aquele velho tabu do lado de fora do quarto.Não permitiria que o magoassem ou que dissessem inverdades, lhe descriminando diante dos outros .Depois do nosso reencontro, você começou a desejar o próximo instante, reagindo melhor com os medicamentos.Ainda não consegui decorar o nome de todos, são muitos, porém eles refletem o avanço da ciência.
Você era parte de nós e uma equipe de profissionais competentes se mostrava prestativos, solidários e amigos.
Não é fácil rever conceitos, principalmente um velho como eu. Porém velho é aquele que não se renova; e estacionar no tempo, significa não evoluir, buscando a própria decadência mental.
Aprendemos sobre a vida e você foi o nosso principal motivo.Não existia nada mais importante do que estar ali, lhe fazendo companhia no banho de sol, na hora do almoço e antes de dormir.
Nem a Grande Final do jogo de truco era tão importante assim e aos poucos fui compreendendo o sentido do verdadeiro AMOR.
Aquele que nada tem e tudo pode justifica todas as formas de mudanças, feitas de dentro para fora.O nosso carinho foi um bálsamo para os momentos de angústia.
Quando voltou para casa, os móveis continuavam no mesmo lugar. Apenas nossos objetivos engrandeciam aquele regresso, enriquecendo a sua chegada como que se jamais tivesse partido.
Não sentíamos dó ou qualquer outro sentimento negativo.Sentíamos respeito por você e era assim que deveria ser.O meu menino sempre foi do mundo, conduzindo sonhos e esperanças, mas dono exclusivo de seu próprio caminho.Então só me restou acompanhar com os olhos a grande lacuna que nos separava cada vez mais, deixando o tempo engolir o álbum de figurinha, a pipa colorida e toda a nossa infância retratada num retrato infeliz.
Poucas pessoas foram lhe ver, talvez por receio de encarar uma situação que um dia poderiam viver também .Pavor de encarar em seus olhos os olhos de alguém conhecido e amado .Porque a AIDS não visita apenas a casa do vizinho, o filho dos outros.O meu filho estava ali com ela e poderia ser o seu.O nosso filho.
Todo começo é difícil e você enfrentou o seu próprio preconceito.A primeira atitude foi de negar o problema.Depois foi a revolta, procurando o culpado. Só que não existe um culpado, porque a AIDS não é um castigo de Deus!
Muitas vezes me encontrei perdido e achei mesmo que eu não soube iluminar o seu caminho, lhe deixando no escuro e sem rumo.
Eu e sua mãe fomos nos procurando mais e passamos a conversar todos os dias depois da janta.Enquanto ela lavava os pratos eu ia me aconchegando perto das panelas apenas para ouvir o que falava.Que mulher!
Nisso dei um palpite, falando sobre a vida e sobre você.E após tantos desencontros diários percebi que estava diante da mulher mais forte do mundo! Melhor mãe, companheira e acima de tudo, amiga.
O jogo de truco não tinha mais tanta graça assim e nem tão pouco a final do campeonato.
Eu preferia ficar jogando conversa fora com você.Com o passar do tempo já ríamos feito duas crianças, comendo pipoca no tapete da sala.
Íamos juntos em todas as consultas médicas e não tínhamos receio em perguntar, esclarecendo qualquer dúvida.
Sempre ouvíamos falar sobre curandeiros famosos que prometiam acabar com a doença da noite para o dia.Só que o próprio médico infectologista nos explicou que a ciência está bastante evoluída oferecendo uma melhor qualidade de vida aos pacientes , porém até o momento nenhum medicamento conseguiu matar ou retirar o vírus HIV do corpo do portador .
Muitos profissionais estão do nosso lado, investindo cada vez mais nesta luta contra a AIDS e é muito importante a participação da família, se amparando entre si, fortalecendo os laços e acreditando que a união faz a FORÇA PARA VIVER.
Nunca é tarde para arejarmos nossas mentes, porque o corpo é a morada do saber e temos que edificar o amor, criar raízes e abrir janelas, purificando o ambiente.
Somos humanos, poderosos e cheios de graças.
Nossos meninos querem carinho e temos o dever de enlaçar cada um numa ciranda de paz, pois eles têm o direito de serem felizes antes que se percam no labirinto da vida.
Não permita que o mundo adote sua criança assim de uma forma tão dolorida. Não lhes deixe á mercê dos instintos desumanos, sendo que o maior de todos é o abandono de um pai.Deixe aquela posição de mero espectador e abra as portas do seu coração, permitindo que ele faça parte de sua ALMA.
Hoje, meu filho, você é guerreiro, digno e corajoso.Mesmo sendo um menino conseguiu fazer de mim um grande homem sempre pronto a lhe aconchegar nos braços que desta vez se unem num abraço, recomeçando uma história de perseverança, resignação e muito AMOR .
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Silmara Torres Retti