Boas Novas

O sol já havia se posto, restando apenas uma mancha de vermelho e dourado na linha do horizonte. Enquanto Marta atravessa a rua, um vento frio soprou, jogando para o alto folhas secas, pedaços de papel velho e poeira. Ao chegar à calçada, tomou um susto: se viu obrigada a desviar de um cachorro que vinha correndo em sua direção. O bicho tinha saído de dentro do supermercado logo à frente. Postado na entrada dele, um funcionário brandia uma vassoura e xingava o cão.

Depois de fazer um pequeno saque no caixa eletrônico que se achava no interior do mercado, apanhou uma cesta e foi em busca do que precisava. Não usaria uma lista para lembrar o que deveria levar. Estava fazendo um curso que ensinava a melhorar a memória e um dos exercícios consistia em listar mentalmente as compras do supermercado antes de sair de casa. Passou na padaria, no açougue, na hortifruti, até chegar na seção de higiene feminina.

Ao apanhar um pacote de absorvente, um homem, carregando um fardo de cerveja e usando boné, passou atrás de Marta e ela sentiu o olhar dele sobre si. Sabia que ele devia estar olhando para o seu belo traseiro. Não era uma Miss Universo, mas tinha boa aparência. Tinha 33 anos de idade, entretanto, parecia mais jovem. Seus curtos cabelos louros, dispostos num corte Chanel, ajudavam a lhe rejuvenescer ainda mais.

Virou-se para o homem e o viu parar na fila do caixa. Logo uma mulher de pele morena e cabelos cacheados postou-se ao lado dele, com um carrinho repleto de compras, dano início a uma conversa animada.

“Pôxa, deve ser a namorada dele...pena... gosto de homem moreno e fortinho...”, pensou Marta, esboçando um sorriso malicioso. Dona do próprio dinheiro e com os filhos crescidos, o que ela mais queria na vida era ser feliz. Gostava de ser desejada pelos homens e se o interessado lhe parecesse atraente, não tinha vergonha de tomar a iniciativa.

De repente, notando seu olhar cobiçoso, a outra lançou um olhar afiado na sua direção. Na mesma hora ela deu meia volta e saiu andando.

“He, he, he... melhor sair daqui... não quero problema pro meu lado...”, afirmou consigo, abafando o riso.

Em outras ocasiões já fora flagrada enquanto desejava o homem alheio, e o resultado era quase sempre o mesmo. Naquele dia não estava a fim de bate-boca. Ou levar um tapa na cara.

Ao virar o corredor, encaminhou às prateleiras que continham dezenas de caixas de leite enfileiradas.

— Óh... — soltou a mulher, ao constatar o vão enorme onde costumava estar o leite da marca da qual era consumidora fiel.

Eis que um jovem, vestindo uma camiseta verde, característico de quem trabalhava no lugar, parou perto dela com uma caixa de papelão em mãos. A pôs sobre o piso, abrindo-a com rapidez, e começou a retirar de dentro dela caixas de leite de uma marca que Marta não conhecia. De dois em dois foi preenchendo o espaço vazio.

— Oi, desculpa te atrapalhar, mas não tem mais o leite Mi-Mi?

— Não, moça. Carregamento novo só na semana que vem. — respondeu concentrado em encher a prateleira com o produto que trouxera.

— Humm... É que eu compro sempre, sabe. No estoque não tem nada sobrando?

— Olha, até tem, mas venceu há dois dias. — e a encarou — Vai querer?

— Ah, não, não, deixa. Obrigada — e atentou para as outras marcas que poucas vezes tinha comprado. Coçou de leve a nuca, nem dúvida. Estava tão habituada com o leite MI-MI que decidir algo tão simples não estava sendo fácil.

Terminado de encher a gôndola, o rapaz partiu, levando consigo a caixa de papelão. Assim que ele se afastou, Marta prestou mais atenção na marca desconhecida. A embalagem era vermelha e branca. O logotipo da marca era o próprio nome do produto, escrito em letras grandes e infantis. Albion era o nome do leite.

Apanhou uma das caixas e com curiosidade começou a estudar as informações nutricionais impressas no flanco do produto. Na parte inferior, rente ao código de barras, descobriu o símbolo dos alimentos transgênicos: um “T” maiúsculo circunscrito dentro de um triângulo amarelo.

— Nossa já estão vendendo isso... — surpreendeu-se Marta, ao saber que tinha em mãos um leite transgênico. Embora a marca em si fosse de seu total desconhecimento, ela sabia muito bem do que tratava aquilo. Há meses os meios de comunicação estavam falando sobre as vacas leiteiras da China.

Cientistas chineses haviam conseguido introduzir com sucesso genes humanos em vacas leiteiras para que elas produzissem leite com características semelhantes às do leite humano. O leite materno possuía uma grande quantidade de nutrientes e era eficaz no desenvolvimento do sistema imunológico. Embora estes efeitos benéficos se restringissem apenas aos bebês, graças as novas técnicas de engenharia genética, era possível potencializar os efeitos, torando-os vantajosos para os adultos também.

Esse leite modificado fora desenvolvido para servir como substituto mais eficiente ao leite comum de vaca. Segundo seus criadores, o consumo do leite modificado era tão seguro quanto o de leite bovino comum. Para completar, era mais barato do que os concorrentes.

— Liberaram mais cedo do que parecia... — comentou a mulher consigo, pensativa. Havia assistido na televisão debates a respeito dos problemas relacionados à ética e segurança de alimentos geneticamente modificados. Mesmo assim, o governo aprovara o alimento, embora imaginasse que levaria tempo até ver o leite no mercado consumidor. — Bom o preço até... mas não, dispenso. — e pôs o leite de volta no lugar, optando pelo já conhecido.

Em seguida dirigiu-se ao caixa.

Apesar de viver num mundo onde as novidades eram sempre bem-vindas, aceitas sem muitos questionamentos apenas porque a ciência dizia ser algo bom e seguro, ela agia diferente da maioria. Não se permitia cegar pelo mesmo fascínio que parecia tomar as pessoas. Achava que todos eram otimistas demais com relação as novidades da ciência.

Desde o advento dos alimentos transgênicos jamais consumiu um produto deses. A seu ver não parecia correto consumir alimentos geneticamente alterados, mesmo com os cientistas afirmando que estava tudo bem. Mesmo que graças aos transgênicos o mundo estava sendo poupado de passar fome. Talvez estivesse sendo ignorante, procurando chifre em cabeça de cavalo, mas sabia que o que era verdade hoje poderia não ser amanhã. A ciência era mutável, técnicas e teorias podiam ser alteradas, melhoradas ou até mesmo negadas pela geração seguinte de estudiosos.

De qualquer maneira, quando se tratava de questões ligadas a sua família, costumava optar sempre pelo caminho mais seguro e conhecido. O bem-estar de seus entes queridos estava sempre em primeiro lugar.

E sempre estaria.