A Filha do Alfaiate

Namorava como se namorava naquele tempo: encontro aos sábados e domingos, mãos dadas era o máximo de contato físico em público que se podia ter, sob pena de arranhar ou até arruinar a reputação da moça. Apanhada em falta, talvez não encontrasse nunca mais rapaz sério para namorar, muito menos para se casar. Ia pegar, no mínimo, apelido de fogueteira, baranga, moça fácil e por aí afora, até coisas bem piores.

Nas fogueiras de São João, de mãos dadas e agasalhadinhos, ficavam olhando o crepitar do fogo. O namoro seguia o rumo natural das coisas: depois do segundo ano, num dia de Santo Antônio, ficaram noivos. Um ano depois, ela insinuou que já podiam pensar na data do casamento. Afinal, os dois já caminhavam para os trinta anos. Por que não no próximo Santo Antônio? Ficaria bom. Dois anos de noivado, já era o suficiente. Encostou seu rosto no dele com carinho e divisou no futuro um bercinho e uma criança roliça e sorridente.

Aí, ele se coçou: casamento? Era um passo que todos tinham que dar, mas era muito complicado seu caso: o pai da noiva era alfaiate. Esse era o grande e único obstáculo. Não era medo de responsabilidade, não era o medo de criar filhos, não era nada. Aliás, filho caçula morando com os pais, não tinha medo de responsabilidade: sustentava os dois velhinhos, com o salário de escriturário da Companhia. O buraco era bem mais embaixo: tinha o terno da festa por fazer.

Ninguém pensava nisso, mas essa preocupação foi que o impediu de namorá-la seriamente muitos anos antes de começarem de verdade. Era um dilema insolúvel. E esse dilema abria-se em duas estradas que jamais se encontrariam, nem no infinito. Era uma bifurcação definitiva. E aqueles grilos passaram a frequentar-lhe as noites, a envenar seus sonhos e amargar-lhe os dias. As horas passadas com a namorada perderam a poesia, o romance. Nem o cheiro da dama-da-noite da Praça do Jardim, nem a troca de olhares silenciosos, enquanto crepitavam as fogueiras de todas as festas juninas do ano, conseguiram devolver-lhe a tranquilidade. Tornou-se nervoso a ponto de brigar no escritório com os melhores amigos e colegas por motivos banais. Explodia com eles, com os irmãos, com os sobrinhos e - coitadinhos - até com os dois velhinhos em casa.

Já não descia com os colegas até a Rodoviária, na volta do almoço, para ver os forasteiros que desciam para os dez minutos de cafezinho e depois seguiam viagem para Belo Horizonte, Abaeté e Martinho Campos. Já não tinha prazer nem de ver descerem as mocinhas em algazarra, com desculpa de ir tomar uma coca-cola ou ir lavar o rosto sujo da poeira das estradas de terra daquele sertão. Todos sabiam que apeavam era só para flertar com os rapazes daquela cidade perdida no mundo. Nesse rol, ele e seus colegas de escritório estavam incluídos.

Sua obsessão era o terno do casamento, era o espinho no seu sapato. Não encontrava a solução que certamente iria pacificar de novo a sua alma simples. E debatia-se entre fazer o terno com o futuro sogro ou com um outro alfaiate qualquer. Fazer com o sogro lhe parecia uma consideração excessiva, a cidade toda iria apontá-lo como o maior capacho da história ou,mais popularmente, o maior de todos os puxa-sacos.

Passava à outra alternativa, com certa esperança de resolver a equação. Porém, fazer com outro alfaiate seria o desprezo total à pessoa humana e ao profissional que era o futuro sogro. Era considerá-lo publicamente um incapaz, um incompetente. Iria enxovalhar para sempre sua reputação de alfaiate e de pai de família. Poderia matá-lo de tristeza com um procedimento assim. No fundo, tinha de reconhecer: o futuro sogro era um homem bom, muito bom, boníssimo, como diria José Dias no Dom Casmurro. Mas uma afronta daquelas podia até ser o estopim para proibir o casamento da filha com aquele canalha de genro, como, por certo, o sogro passaria a considerá-lo.

Um dia, quando começou a cogitar de matar-se por não saber o que fazer, tomou, finalmente, a decisão que lhe custaria, talvez, a felicidade afetiva, mas que, noutro extremo, certamente lhe conservaria a sanidade mental e também a própria vida: terminou o noivado e mudou-se da cidade para sempre.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 10/08/2016
Reeditado em 13/08/2016
Código do texto: T5724335
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