Sonhos perdidos
Menino bonito, olhos aguçados olhando a paisagem que por ele passava, deslumbrado, nada o incomodava.
O ônibus corria velozmente pelo asfalto e lá atrás uma vida ficava, pois agora somente sonhos poderiam ser visto nestes olhos aprofundados em pensamentos de sua vida, de um tempo que estava a cada quilometro mais distante, aninhou-se no canto da janela, fechou os olhos e adormeceu em seus sonhos.
O ônibus parou lentamente na Rodoviária, ele acorda sobre-saltado e olha ao redor meio assustado com um mar de gente ao lado de fora. Era São Paulo.
Marcos havia fugido da casa de seus pais, deixara tudo para trás, tinha apenas os seus sonhos na bagagem, sonhos de encontrar um lugar ao sol para aquecê-los.
Olhando toda aquela gente começou a sentir um medo dentro de si e somente agora percebeu que estava só, não sabia agora que rumo tomar e se perguntava – “Meu Deus! O que vou fazer no meio desta gente. Para onde irei?” Ele não tinha noção do quão grande era esta Capital que escolhera para refugiar-se e conseguir realizar seus sonhos.
Saltou do ônibus como costumava saltar do cavalo a alguns dias antes. Foi caminhando no meio de toda aquela gente e começou a sentir-se perdido como em uma vez que havia entrado na floresta e não sabia mais como voltar, mas naquele tempo havia seu pai e o cão vira-lata que o encontrara e o salvara depois de longo tempo perdido, mas e agora? Seu pai estava distante e seu cão nem sequer se despedira dele, agora o jeito era seguir em frente e sair do meio daquela gente que o estava apavorando. Olhou a placa “Saída”, correu para lá pensando que se livrara de toda aquela gente, mas foi mera ilusão, pois lá fora também estava repleto de gente, num vai e vem interminável. Resolveu pedir informação, pois não sabia para onde seguir, avistou um guarda e correu em sua direção.
- Senhor. Por favor...
O guarda olhou para aquele menino franzino que tinha os olhos que pareciam saltar das órbitas, ele já conhecia este olhar carregado de sonhos e desespero por não saber por onde começar e respondeu..
-Sim. Pois não?
- Como faço para chegar ao centro da cidade?
- Ora! Porque não pegou o metrô?
Marcos ficou calado por um momento se perguntando - Metrô? -. Nunca ouvira falar e nem sequer conhecia, por medo achou melhor dizer que queria ir de ônibus.
- Bem. Eu gostaria de ir de ônibus.
- Ah! Então ali na frente tem um ponto é só olhar o que está escrito Praça Ramos e lá pergunta onde descer.
- Obrigado, senhor.
E lá correu Marcos todo agitado nem mesmo sabendo o porquê de querer ir ao centro da cidade, logo avistou o ônibus que parou, logo que entrou perguntou ao cobrador - Onde é a Praça Ramos?
- Quando chegar eu te aviso.
O ônibus começou a andar e ele cada vez mais assustado com os imensos edifícios que mais pareciam uma selva de pedras, jamais imaginou que pudesse existir algo tão imenso assim, mas no fundo o medo e o deslumbramento se compactuavam.
- Hei menino... É aqui
Foi até a porta e saltou, olhou ao redor e sentiu-se uma formiguinha em outro formigueiro.
Já eram 11h30min. e o estomago começava a reclamar pelo vazio sentido nele, desde que saíra de sua casa nada comera e agora revirando seus bolsos em busca de algum dinheiro encontrou algumas míseras moedas que ainda lhe restavam. Viu do outro lado da rua um bar onde na porta estava escrito “Lanche R$ 2.00”, contou seu dinheiro e viu que dava para pagar, deu um leve sorriso, entrou e foi logo pedindo antes que desmaiasse de tanta fome. Começou a comer e entre uma dentada e outra pensava - Que falta faz o feijãozinho com arroz da mamãe-. Foi a primeira vez que se lembrou de sua casa.
Saiu do bar agora já sem fome, mas com um grande dilema, o que faria sem dinheiro e sem saber para onde ir, apenas com uma pequena mochila e alguns pertences e sem conhecer ninguém. Numa cidade aparentemente despreocupada com o que ocorre ao redor, onde ninguém sequer olha para o lado de tão acostumados a ver mendigos dormindo pelas calçadas e crianças correndo de um lado para o outro com um pequeno saco de plástico com cola de sapateiro para cheirar.
Mas o que ele não sabe é que este é o cotidiano de uma metrópole como São Paulo. Marcos vai caminhando e de repente para com o olhar estupefato, nunca imaginara ver um lugar tão bonito, todo iluminado com várias luzes e um grande laço na porta principal, na escadaria muitas pessoas olhando o programa de final de semana pendurado numa das colunas. Ele fica ali parado deslumbrado, aos poucos vai diminuindo a circulação das pessoas, e ele sem saber o que fazer, pois tudo agora estava fechando e a noite estava cada vez mais densa. Sem saber o que fazer pergunta a um mendigo - Que lugar é este?- O homem responde:
- Não sei menino. O que você quer saber?
- Esta casa grande que parece um palácio.
- Ah! Este ai? – Aponta para o lugar.
- É o Teatro Municipal.
- Hum... Dá para ficar aqui pela escadaria?
- Por quê? Não tem onde ficar?- pergunta o mendigo
Marcos um pouco receoso olha ao redor e mesmo com medo responde:
- Não. Não tenho.
- É menino... Hum... Complicado, mais um na rua.
E saiu resmungando consigo próprio, e Marcos lá ficou sozinho sentado na escadaria do Teatro Municipal.
Era uma noite bonita sem frio, mas ele não sabia o quanto a noite na rua poderia parecer longa, sem um cobertor aconchegante e uma comidinha quentinha.
A rua estava cada vez mais vazia, agora o medo começou a invadir sua alma, ele simplesmente não sabia o que fazer, olhava a única loja aberta a sua frente, ainda tinha muita gente lá dentro, mas dentro de si pensava- e quando esta loja fechar o que será de mim? Eram 22h00min. Então a loja fechou e ele continuou no mesmo lugar, talvez a espera de um milagre, pois nunca estivera tão sozinho em sua pouca idade. Aos poucos viu alguns mendigos irem se alojando perto da loja, uns com papelão e fiapos de cobertores que provavelmente alguma loja ofereceu nas campanhas que são feitas no inverno. Ele olhava com curiosidade, nunca vira nada parecido, tudo era novidade. Depois de um longo tempo observando, de ímpeto foi ter com eles, foi chegando devagar com medo da reação deles por ele ser uma criatura estranha naquele lugar, prefere falar com um menino mais ou menos da sua idade.
- Olá... Vocês vão dormir ai?
O menino o olha meio ressabiado, pois nunca o vira por ali.
- Sim. Vamos por quê?
- Bom... É que não tenho para onde ir. Queria perguntar se posso dormir ai também.
- Acho que pode. Vou perguntar para meu pai.
O menino corre de encontro a um homem esfarrapado com um cigarro na boca tentando dar água a um cão com uma latinha. Cochicha com ele algumas palavras e volta correndo até Marcos.
- Meu pai falou que pode.
- Que bom... Obrigado. Qual é teu nome?
- O meu é Luiz e o teu?
- Marcos.
Ele agora prefere ficar quieto, pelo menos, tinha essas pessoas ao seu lado, já não sentia tanto medo.
Ás onze horas e trinta minutos os mendigos começaram um alvoroço, viram um carro parado e todos correram em sua direção e Marcos fica apenas observando sem entender o porquê daquela correria. Ele vê Luiz correr também e pergunta curioso...
- Aonde vai?
- Vamos... Vamos pegar a comida.
Ele já com o estomago vazio resolve ir também e percebe que existem pessoas que não são indiferentes e se preocupam com aqueles menos favorecidos que não tem o que comer como ele naquela noite, ele agarra o copo de sopa quentinha oferecida. Para ele tudo é novidade e ainda não percebeu que na verdade continua sozinho. Seu pensamento agora está no alimento, pois era a primeira refeição real que seu estomago recebia desde que saíra de casa, o que esquentou um pouco o corpo e diminuiu a quase desnutrição que já o invadia.
Cinco horas da manhã o movimento começara e eles agora precisavam sair daquele lugar, ele olha aquilo tudo meio atordoado, pois ainda sente muito sono, mas precisa também ir e pensa- Ir para onde?- Pega o papelão que dormira, senta-se e ali mesmo fica. As horas passam, o movimento aumenta e ele fica cada vez mais desesperado.
Sentiu uma mão nas costas que o fez olhar sobre-saltado, mas era apenas Luiz que resolvera voltar e pergunta:
- Que vai fazer Marcos?
- Não sei ainda.
- Olha vamos até a Praça da Sé.
- Bom... Eu não sei onde é, mas vamos lá.
Os dois vão caminhando até a Praça da Sé e pelo caminho Luiz encontra vários amigos de rua. Marcos percebe esta comunicação e fala:
- Você é bem conhecido por aqui.
- Um pouco, é que sou “aviãozinho”.
- “Aviãozinho”? O que é isso?
- Ah! Depois te explico, agora temos que descolar uma grana para comer.
- Me espere aqui... Já volto.
Luiz o deixa e vai em direção a uma rodinha de meninos onde no centro havia um garoto chamado de Guga, ele era considerado o mentor de todos por ali.
- Luiz... Por onde andou? Está querendo levar um castigo é...
- Claro que não! Hoje tenho um bom motivo. Conheci um menino que acabou de chegar do interior, talvez você aceite ele para trabalhar comigo.
Com cara de bravo olhou ressabiado para ele e perguntou:
- Quantos anos ele tem?
- Hum... Acho que uns onze ou doze, não sei ao certo.
- Você conhece as regras, primeiro você o faz conhecedor dos “alimentos” e se gostar ai então teremos uma cara nova no mercado.
- Sim. Mas ele nada sabe e tem outra coisa está sem nenhuma grana para sobreviver.
- Bom! Então te dou a grana para comerem, mas você precisa agir rápido e sabe que ele precisa ficar com fome para saber dar valor ao que o vai sustentar.
Enquanto isso Marcos entrou na Catedral da Sé, sentou-se no banco e acabou cochilando. Acordou assustado com Luiz lhe chamando - Marcos... Marcos acorde precisamos ir.
- O que? Onde estou? Ai! Deus, que lugar é este?
Ele nada fala sobre Guga e muito menos que tinha dinheiro. Saíram da igreja e foram encontrar outros que já esperavam por Luiz na porta do metro.
Marcos continuava calado somente ouvindo o que eles falavam e não entendia nada com sua ingenuidade legitima de menino do interior.
Esperou estar sozinho com Luiz para perguntar
- O que você come durante o dia?
- Quase não como até ganhar uns trocados de alguém.
- E como faz para conseguir dinheiro?
- Vou pedindo para as pessoas e vou juntando.
Neste momento Marcos sente-se terrivelmente com vontade de voltar para casa, de estar ao lado de sua mãe e irmãos, mesmo levando castigo, levando umas palmadas vezes ou outra, até o trabalho na roça neste momento parecia melhor, pois pelo menos tinha na hora do almoço alguma comida e agora nada tinha para comer. Sua barriga fazia um barulho enorme pela fome que estava sentindo, pensou na sua cama quentinha que dividia com seu irmão e a saudade foi apertando cada vez mais. Agora estava ali a mercê da um destino que não poderia saber onde terminaria. Luiz interrompe seus pensamentos.
- Olha... Agora eu preciso fazer uns “role” ai quer ir junto?
- Nada tenho para fazer e nem saberia para onde ir. Melhor ir junto.
No caminho Luiz tira um saquinho de plástico do bolso e oferece a Marcos. Ele logo pergunta – O que é isso?
- É para que a fome não apareça e para esperar uma grana aparecer.
- E o que vai fazer com isso? Não conheço nada disso.
- Ora... É fácil vou te ensinar. Quer? Veja...
- Colocou o saquinho na boca e no nariz e começou a respirar dentro dele. Marcos olhava com os olhos arregalados nunca em sua vida vira isso e resolve no ímpeto intervir – Vai morrer afogado-
Luiz tira o saquinho e começa a gargalhar.
- Não... Não vou morrer. Pega ai é sua vez.
Marcos sem jeito, mas com curiosidade pega o saquinho e faz exatamente o que Luiz fez começa a respirar... Respira e nada mais vê, fica tudo escuro a sua volta. Acorda com Luiz o estapeando-o – Acorda pow! Marcos acorda e olha para ele sorrindo.
- E ai “meu” que achou? Gostou?
Não saberia responder de imediato, pois estava atordoado, mas sentia uma imensa euforia tomar conta do seu ser.
- Vamos Marcos que estou atrasado.
Marcos cambaleando caminhando em câmara lenta foi seguindo-o, observou quando ele chegou a um carro, tirou do bolso um saquinho bem pequeno e entregou ao motorista, que lhe deu um dinheiro. Espera ele voltar e pergunta:
- O que você deu ao motorista?
- Ah! Isso que te falei lembra? Que trabalhava como “aviãozinho”.
- E ganha muita grana?
Luiz faz uma careta e faz um gesto com a cabeça que não.
- Então porque faz isso se não tem grana?
- É complicado, para entrar é fácil, mas para sair impossível.
- O que vai fazer com esta grana ai?
- Vou entregar para o Guga.
Curioso Marcos pergunta:
- Quem é Guga?
- O cara para quem trabalho.
Marcos na sua inocência nem imagina que já está participando do tráfico de drogas.
Devido ao estado em que se encontrava já não tinha mais como retornar a casa de seus pais. O tempo foi passando, ele acabou aprendendo tudo com Luiz e agora já fazia sozinho a parte da entrega, se tornando um “aviãozinho”. Tristemente entrara para a história da criminalidade sem ao menos ter aprendido a ler e escrever, mas agora aprendera na escola da criminalidade da vida, que para sua infelicidade só tem passagem de ida, onde ninguém se forma, onde só existe uma certeza (a FEBEM ou a morte), pois quem entra não sai. E quem sai morre.
Cada vez mais o dia de sua chegada se distanciava, muito tempo havia passado e já estava viciado na cola, maconha e crack. Havia esquecido todos seus sonhos de quando ainda estava na sua cidade, de vir para a Capital e vencer para ajudar sua família, agora nem dela mais lembrava a droga o consumia por inteiro, nem mesmo se importava mais de dormir ao relento na noite pelas calçadas. Quem o viu chegar jamais o reconheceria.
E lá se vai mais um ano da sua vida entre drogas e o corre-corre da polícia, que estava sempre no encalço deles, ainda não fora pego nenhuma vez, sempre conseguia fugir, pois era muito rápido.
Sua vida se transformara e aquele menino gentil, educado, sonhador morrera naquele dia que chegara a São Paulo, não por culpa da cidade, mas sim da impunidade, das injustiças sociais, onde é proibido sonhar.
Numa noite normal como tantas outras que já passara na rua, estava com Luiz e mais alguns meninos da rua fumando a maldita erva “maconha”, quando viram um carro parar, dentro dele um casal que sem se preocupar começaram a namorar. Eles totalmente alucinados pela droga resolveram num ímpeto os assaltar, um deles tinha uma faca e outro um estilete, chegaram de supetão dando um belo susto no casal que de imediato resolveu colaborar, pois não havia muito que fazer. O homem logo pegou a carteira, entregou a um deles que também pegou a bolsa de sua namorada e iam gritando – Fiquem quietos senão morre – Pegaram tudo que puderam e saíram em disparada pelas vielas.
Mas o crime nunca é perfeito, nem de um lado nem do outro e eles não contavam que aquele homem era na verdade um policial apenas não queria que soubessem por que seria pior, eles iriam querer a sua arma que estava no porta luvas por isso ele ficara calado e entregara tudo. Mas na vida para toda ação há uma reação, ele ficou furioso por ser assaltado por vários “pivetes”, abriu o porta luvas, pegou sua arma e com uma grande fúria nos olhos saiu correndo na direção que eles foram e quando os viu começou a atirar a esmo.
Todos ainda estavam correndo quando Marcos sentiu um adocicado na boca e uma leveza no corpo, chamou por Luiz, mas este não o atendeu e ele foi caindo... Caindo lentamente, somente agora percebeu que havia sido atingido por uma bala e que do seu peito o sangue jorrava, levou a mão ao peito e ainda com um sorriso nos lábios fechou os olhos lentamente. E lá jazia seu corpo de menino adolescente com seus sonhos a sonhar em um outro mundo ao qual pertencia agora.
O dia amanheceu e ninguém ainda havia aparecido para recolher o corpo do menino e todos passavam indiferentes ao que acontecia, um ou outro apenas comentava:
- Menos um “bandidinho” a nos aborrecer.
Outro sem qualquer emoção ou sentimento respondia:
- Sim. Quanto menos destes viciados na rua melhor.
Ninguém se preocupava que ele nem sequer completara quatorze anos, o qual completaria no próximo mês, apenas um menino que chegara cheio de sonhos e ilusões no coração e acabou padecendo nas mãos de pessoas inescrupulosas, egoístas que somente se preocupam com o dinheiro que iriam ganhar à custa de alguém. Acabam pagando com suas vidas por algo que não tem com isso, são treinados para fazer um trabalho de homens mesmo sendo crianças.
Mais uma história, mais uma vida que se perde na história da malandragem, dos traficantes de vida, mais uma que passou e ninguém sentiu. Um dia quem sabe sua família saiba como ele partiu, mas jamais como realmente aconteceu. Mais uma criança que se perdeu nesta jornada absurda que todos os dias ouvimos falar.
Vidas que desabrocham como flores
Que caminham pela vida com sonhos
Mas nem sempre os sonhos se realizam
Muitas vezes são ceifados na flor da idade
Quando pensam que estão dentro do sonho
O sonho a muito já havia passado
Às vezes se vivem por muito tempo
E outras o muito tempo é breve
Se tornando o muito no pouco tempo
Vivido nesta vida repleta de sonhos
Onde a ilusão comanda cada passo
Cada batida de um coração que sonha