VIDAS CRUZADAS - PARTE IV

PARTE IV

O outono começou mais fresco naquele 1816. Madrugada adentro do primeiro dia do ano, ouviu-se gritos vindos da casa grande. Parecia ser Luzia que pedia socorro. A senzala ouvia e ficava sem saber o que fazer. O capitão do mato estava ausente, e além da mucama, nenhum dos escravos permanecia na casa grande. Foi quando os gritos se intensificaram e Francisca, a mucama, pôs o rosto na janela que dava para os fundos e gritou para a senzala:

__ Gente, ó gente, corre cá que o sinhozinho Felipe tá morrendo.

O grito era de desespero. Apesar de ser o senhor e dono, era amado porque não castigava, mas tratava bem. E isso era raro nestas bandas. Muito raro. Nisso, correram para a casa grande, atravessando o gramado proibido, alguns dos escravos. Manoel, Rosa e sua mãe estavam entre o grupo de mais cinco pessoas. Ao entrarem no quarto, viram uma cena horrível. Sinhozinho Felipe contorcia-se ao chão. Convulsionava e parecia estar sofrendo um ataque maligno, que na África possuía um caráter sobrenatural. Mas não era na da disso, era apenas uma convulsão de desconhecidas causas. Nisso, Manoel correu e chamou Albertina, escrava velha, a que envenenou o senhor e sabia de ervas e raízes que curavam as doenças. Encurvada pelo tempo, subiu lentamente para a mansão e já fazia sinais de cruzes e se benzia. Olhando a cena:

__ Fia – disse apontando para a mucama – põe ele de lado e coloca um travesseiro.

Feito isso, Tina correu-lhe o rosário pelo corpo, rezou e cantou estranhas cantigas de negros jogou-lhe um pouco de água que estava preparada para a noite do sinhozinho. Todas as noites ele deixava uma jarra para tomar pela madrugada. Ela apenas fez um sinal de cruz e jogou no moço. Silenciou-se a casa grande. A madrugada na fazenda impôs uma mudez de morte. Até o barulho dos sapos nos rios e dos grilos cessaram. Todos olhavam para o rosto do rapaz, que, aos poucos, cessava sua crise convulsiva e ia-se voltando ao normal. Os olhos, antes revirados, foram tomando a cor da juventude e meio que revivendo. Ele tossiu suavemente, levantou a cabeça, olhou um pouco desnorteado para os presentes, franziu a testa e levou a mão à nuca.

__ Que foi gente? O que fazem aqui? Por que estou no chão?

Luzia chorava e levava as mãos ao rosto e, num gesto inusitado para a matriarca, abraçou Albertina e agradeceu profundamente.

No médico da vila, Felipe soube que aquilo poderia acontecer por causa do cansaço e das preocupações. Recomendou uma mistura que ele mesmo fazia, que, segundo ele iria acalmar e o jovem teria bons sonhos. Recomendou ainda que trabalhasse menos e não colocasse em seus ombros toda a responsabilidade do pai. Voltou pra casa mais feliz, pois havia ouvido de tudo nos três dias antes dessa visita.

Na senzala os bochichos sobre o mal que acometeu o patrão deixou escapar um segredo, que na verdade nunca fora segredo, mas o fato de ser dito em alto e bom som, provocou um silêncio profundo e troca de olhares ressabiados entre os escravos, que logo se dispersaram para evitar mais falatório. É que no vai e vem das possibilidades da doença de Felipe, alguém falou sem querer:

__ Isso é paixão ingrata, é que Rosa lhe afeiçoa, mas não o ama.

O imenso mal estar causado atingiu a alma de Manoel. Ele sempre soube da paixão do patrão pela escrava mais bonita, mas ninguém, até hoje, havia deixado essa questão tão às claras assim. Era sinal de que o assunto já havia virado comentários entre todos. Manoel nunca ouviu ninguém falar nada sobre Rosa. Era certo que todos sabiam de tudo. Rosa, que estava na senzala no momento da discussão, recuou-se do lado de fora, próximo ao riacho, e chorava discretamente. Manoel saiu pela estrada que leva à plantação, em disparada. Não voltou, antes de o sol nascer. Albertina foi a única que teceu um comentário, entre um sorriso de desconfiança:

__ Isso ainda vai dar o que falar...

Dia novo. Sol que brilha, trabalho que é muito. Felipe acordou cedo e sentia-se muito bem. Pouco depois do sol, já estava ele já conversando com o capitão do mato, Elísio e dando as ordens do dia. Foi até a senzala e agradeceu pessoalmente à Tina, e chamou todos para se reunirem à hora da Ave Maria em sua casa, no gramado. A mucama Francisca preparou durante todo o dia, bolo e biscoitos para todos, com a ajuda de algumas escravas. Quando o sol já ia se pondo, todos estavam, em obediência à ordem do senhor, reunidos no gramado. Uma mesa farta estava posta e havia um imenso bolo. Luíza sorria pelo filho, de satisfação, mas não escondia o desgosto de ver a senzala naquele espaço que era reservado somente à sua família e era tão admirado pelo falecido marido.

__ Boa noite gente – começou Felipe – todos devem saber o motivo pelo qual chamei vocês aqui. Esse bolo é para comemorar minha nova vida. Sim, minha nova vida. Eu devo a vocês, principalmente à Albertina minha vida de volta. Hoje faz cinco dias que sofri um mal súbito, e graças a ela, estou vivo.

Nisso veio padre Sérgio dando uma bênção especial e fazendo a ação de graças. Felipe era cumprimentado, e, depois que todos já haviam provado do bolo, ao distribuir os biscoitos, Felipe continuou sua fala.

__ Quero aproveitar também essa oportunidade para falar a vocês o que guardo comigo há muito tempo. Sou homem de respeito, e nunca iria desonrar qualquer moça, seja ela de que família for. Também não quero forçar nada, mas nesses dias de repouso e recuperação, pude pensar um pouco na minha vida e em como quero terminar meus dias. Um homem não nasceu para viver só. Meu pai teve a honra e a sorte de conhecer minha mãe e com ela construiu nossa família...

Enquanto ia falando, os escravos começaram a ficar atônitos. Já entendiam onde ia terminar aquele palavrório todo. Olhavam para Manoel e compreendiam que, por ele já se passava um fio de espada, como a corroer o amor que nutre pela bela Rosa. Todos cochichavam e se perguntavam se o senhor Felipe saberia do amor que o escravo nutria por ela e que parecia ser correspondido. Sim, parecia, porque Rosa sempre foi amável com todos, mas era mais amável com ele. Entretanto, nunca nada havia dito. Moça que se preza não vai atrás de homem. Sempre esperou um gesto da parte do rapaz. Em vão.

E virando-se para Rosa, que se assentava timidamente num banquinho de madeira, disse-lhe com ternura:

__ Aceita ser minha mulher?

Palavras que provocaram reações muito diversas. Os escravos anteviam todos os problemas, e Luíza precisou se assentar no bando da varanda, onde se localizava a mesa com a comida e se assentavam os donos da casa, o padre e alguns poucos convidados da cidade, entre eles, Ernesto, o comerciante, que sorria meio sem graça.

A mãe nunca esperaria uma atitude do filho. O padre não se espantou tanto, pois era confidente de Felipe e já o tinha ouvido dizer algo parecido em suas conversas. Entretanto, namorar e casar eram um tanto inadmissível na sociedade escravista do início do século dezoito. Imagina!!! A reação mais intensa foi, no entanto, de Manoel. Ele saiu apressado, rumo à velha estrada, com os olhos úmidos. Foi seguido por seu amigo Bernardo, que quase não o alcançou. Rosa olhava a tudo. Assustada.

Seguiu-se um silêncio incômodo. Enquanto o padre restaurava as forças de Luíza, Ernesto olhava fixamente para o rapaz e para a moça, que era abraçada por suas amigas de sina e sofrimento. Felipe sorria, esperando uma resposta.

__ O pai dele tirou meu pai, Bernardo. Esses senhores tiram tudo da gente. Negro já não tem liberdade, não tem alegria e agora não tem nem mais direito ao amor. Ah! Isso não há de ficar assim. Rosa não há de aceitar. Donde já se viu casar com branco!

O amigo o abraçava e tentava consolar:

__ Mas Manoel, vida de negro é assim... a gente não escolhe, a gente é escravo. A gente trabalha e espera a comida do patrão e suas ordens. Sempre foi assim...

Rosa teria escolha? Sim, mas poderia expressa-la livremente? Quem seria a pretensão da escrava? Ora, sempre lhe ensinaram que o povo da senzala abaixa a cabeça e diz sim senhor. Mas Rosa, menina doce, escondia em si um segredo. A senzala que se prepare.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 24/07/2016
Código do texto: T5707359
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